Schumacher: a compreensão de uma lenda.
Chegou recentemente à Netflix um documentário inesperado: Schumacher. Está disponível desde dia 15 de Setembro (data que coincide com a estreia do alemão na Formula 1 há trinta anos) e tinha sido anunciado apenas no final de Agosto. É mais uma colaboração entre o gigante do streaming e a FOM, entidade responsável pela Formula 1, após o tremendo sucesso da série Formula 1: Drive to Survive, notoriamente responsável pelo interesse de várias novas gerações no topo do desporto motorizado.
Mas Schumacher é inesperado por vários motivos. Vários conhecerão o nome do alemão, e talvez ainda o associem a um período muito dominante no desporto, junto da Ferrari; os adeptos mais dedicados lembrarão a sua breve passagem pela nova Mercedes de Hamilton, enquanto os antigos sabem do início de carreira na Benetton F1. Actualmente, Schumacher já não faz parte da vida activa no desporto — num papel de líder de equipa, por exemplo, que muitos lhe vaticinaram por todo o talento e predisposição demonstrados nos anos como condutor: desde um terrível acidente de ski nos Alpes Franceses, as informações sobre a sua saúde são parcas e pouco encorajadoras; nunca mais se viu uma fotografia, e muito menos uma aparição pública, de Michael Schumacher.
Por isso, a chegada do documentário foi recebida com surpresa e muito entusiasmo. A sua estrutura geral é simples e celebratória, e não foge ao habitual neste tipo de registo (veja-se Senna (2010), que servirá como referência). Percorre desde a sua infância ao período com a Mercedes, alicerçando-se em talking heads e em excelentes imagens de arquivo; os eventos são acompanhados por várias personalidades fundamentais do desporto, como Jean Todt, Mika Häkkinen, Silvio Briatore, e ainda os cândidos depoimentos de Corinna Schumacher, esposa de Michael, e dos dois filhos (Mick Schumacher é, actualmente, piloto de Formula 1 com a Haas).
Vemos a progressão da lenda com várias imagens do início da sua carreira nos karts, e mais tarde na Benetton e no seio da Ferrari — quanto a estes, há um momento, belíssimo, em que se filma os dois pilotos da equipa italiana a rasgar um circuito sem luz do dia, em testes e treinos; sente-se a tal dedicação de Schumi que terá elevado a equipa ao domínio nos anos 2000. Por outro lado, há uma preocupação em balançar os depoimentos de Corinna e outros amigos, que contribuem para um outro retrato de Schumacher, contextualizando os feitos do homem-mito à luz da vida íntima e familiar.
Entre toda a narrativa, há um período em particular que é extraordinariamente tratado: a coincidência de Ayrton Senna e Schumacher na grelha da Formula 1, entre 1991 e 1994, ano em que Senna tem o seu acidente fatal. É célebre a reacção do alemão quando, vários anos mais tarde e em plena conferência de imprensa, o jornalista o lembra ter igualado Senna no número de vitórias em corrida; segue-se um momento de muita vulnerabilidade, na companhia de Mika Häkkinen e o irmão Ralf (também piloto), no qual a máquina Schumacher se humaniza, e quebra sob o peso do momento.
Nesta fase, o documentário socorre-se de uma entrevista feita após esse desastre — é um dos poucos momentos em que Michael aparece em diálogo directo, e nos é permitida algum contacto não mediado pelas memórias da esposa e amigos, ou por imagens em contexto profissional ou familiar. Descreve o que se passou, e o que sentiu, durante e após essa fatal corrida — Schumacher seguia imediatamente atrás de Ayrton quando o brasileiro perdeu o controlo na curva. Felizmente, tudo isto é gerido com delicadeza: sente-se a perda de Senna, claro, e o impacto na vida e carreira de Michael; mas também se alimenta a grandiosidade dessa rivalidade que nunca se pôde concretizar.
Resumem-se anos e anos de corridas perigosíssimas, com velocidades absurdas em condições de segurança precárias — é tratada uma infame escaramuça com David Coulthard, que nos oferece um retrato da personalidade vincada de Schumacher, e um grave despiste mais tarde, que o lesionaria. Até ao grande acidente de Senna, os adeptos do desporto habituavam-se ao desaparecimento de pilotos da grelha, no decorrer do calendário de corridas — fatalidades grotescas que frequentemente eram televisionadas. Mais recentemente, Kubica teve um enorme acidente em 2007, donde saiu relativamente ileso, e a louca época de 2020 fica indelevelmente marcada pelo gravíssimo acidente de Romain Grosjean, que conseguiu escapar do cockpit pelo meio das chamas. Mas em 2014, há o violentíssimo acidente de Jules Bianchi (doravante levou à inclusão do halo na estrutura dum carro de Formula); 2019 ficou marcado pela morte de Antoine Hubert, jovem piloto de F2. Nunca a Formula 1 foi tão segura como agora, mas o risco está sempre presente.
O propósito de Schumacher, havendo algum, será o de aproximar a lenda dos seus fãs, numa fase em que a sua figura pública está desaparecida há quase dez anos; mas contribui, no plano maior deste desporto, para um melhor entendimento do que é — quem é — um piloto de Formula 1. Dentro da comunidade de adeptos da Formula 1, terá contribuído para atenuar a ausência do carismático Schumi das grid walks, ou dos cargos de influência no desporto; e talvez ajude à compreensão deste vazio que é deixado nos fãs, mas também (e sobretudo) na família. O documentário está aprovado, e assume-se como um sólido retrato da pessoa, assim como mais uma entrada na excelente linhagem de cinema dedicado à Formula 1.