Sem falar em turistas e pastéis de nata
Após alguns meses a caminho da Zona M de Chelas consigo, finalmente, acertar na saída da estação de metro que me permite chegar, mais rapidamente, ao bairro que tenho destinado. Assim que subo as escadas, apercebo-me que a Lisboa é outra. A nossa cidade, dos pastéis de nata e do Fado, das sardinhas, do Chiado e dos turistas não existe, não apenas para os turistas e para todas as outras pessoas que comem pastéis de nata, mas também para os próprios habitantes do bairro. Ali só vai, diria, quem tem de ir. Para quem passa os dias na Avenida de Berna, a ver o trânsito do fim de tarde, admito que é um alívio chegar àquele lugar – a própria necessidade de andar apressadamente, mesmo quando não se tem pressa, desaparece.
O bairro ao qual me dirijo, assim como qualquer outro bairro social, é formado por imigrantes que a cidade veio, ao longo dos séculos, a empurrar para a periferia à medida que alargava as suas fronteiras. Ao longo de gerações, a vida destas famílias tem sido um adaptar constante às regras, às mudanças e à vontade do próprio Estado, que tanto reabilita certos espaços como ignora as necessidades de outros. Não é só o Estado que o faz, o próprio cidadão toma essa atitude – não passa pela cabeça de ninguém andar na linha vermelha do metro com outro destino para além do Parque das Nações ou do Aeroporto, a linha amarela conhece-se até ao Campo Grande, ou Quinta das Conchas no máximo, depois disso só é referida nas manchetes dos jornais, já para não falar da tão temida linha de Sintra.
Daqui advém a primeira grande questão que podemos colocar: porque é que o debate sobre o racismo, cada vez mais alargado, e o crescimento de gerações que se afirmam como não sendo racistas, não quebra o silêncio sobre esta realidade? Os nossos preconceitos, conscientes ou inconscientes, persistem: mudamos de passeio, ou tememos uma espera numa paragem de autocarro, se alguém de cor ou etnia diferente se aproximar de nós ou permanecer nessa mesma paragem. Enquanto o racismo é debatido um pouco por todo o lado, a questão do cidadão africano que vive no bairro e do seu vizinho de etnia cigana é ignorada; enquanto a televisão portuguesa se dedica a fazer reportagens sobre uma cidadã de etnia cigana que se tornou advogada, nós continuamos a jantar e a esperar a novela, sem pensar no absurdo desta mesma reportagem ou no porquê de ela acontecer.
Como, quanto a questões raciais e étnicas relativas a cada indivíduo em particular, pouco há a fazer para além de debater, consciencializar e esperar que um novo pensamento seja fruto da próxima geração, interessa, agora, referir as medidas concretas que o Estado tem implementado nestes lugares – Estado, não associações particulares, assentes em voluntários e nos próprios moradores.
Em primeiro lugar, as medidas de fiscalização levadas a cabo pela polícia. Brito Guterres, um importante ativista nesta matéria, resumia, bastante bem, esta realidade na sua talk, na última edição do Festival Política, dizendo que os bairros são visíveis como campos de treino para os polícias. Qualquer um de nós comprova, facilmente, esta ideia através dos media – não faltam manchetes de jornais sobre rusgas, detenções, fiscalizações e todo o tipo de operações. Os próprios moradores testemunham-na, como podemos ouvir no episódio Chelas City, a capital de Lisboa, pertencente ao podcast É Apenas Fumaça. Se este exagerar do poder por parte da força policial impede o tráfico de droga, as rivalidades entre habitantes dos bairros ou os furtos? Podemos pensar que, em último caso, as reduz ou impede a sua propagação. Mas não será esta análise superficial? Não será como um remendo rápido que fazemos numa peça de roupa, sabendo perfeitamente que, na próxima utilização, esta vai voltar a romper-se? A rutura não se dá nas gerações que, de facto, roubam e traficam droga – isto seria como convencer os nossos avós a aceitar a homossexualidade – dá-se nos seus descendentes, nas crianças que frequentam a escola e que têm, através dela, contacto direto com a educação. Neste sentido, parecer-me-ia mais frutífero uma aposta nesta última, em vez da aposta na repressão policial. No entanto, enquanto que a segunda opção não implica conhecer e entender a população alvo, a primeira implica, e esse esforço não são todos que estão dispostos a fazê-lo.
Em segundo lugar, importa referir o realojamento e a reconstrução dos espaços. A maioria dos bairros, tal como os conhecemos atualmente, já são fruto dessas políticas de realojamento. Apesar do longo caminho que ainda é necessário percorrer, o Estado tem tentado cumprir com aquilo que é o Artigo 65.º da parte I da Constituição Portuguesa: o Direito à Habitação.
Quanto à reconstrução urbanística, a questão já não me parece tão clara como a anterior. São já em número considerável os projetos que visam este objetivo, como por exemplo o “Aqui há Mais Bairro” que aposta na renovação de 21 bairros municipais e, de facto, se a nossa curiosidade vencer o medo e nos dirigirmos a estes lugares, podemos observar as mudanças. A antiga freguesia da Ameixoeira, agora denominada Santa Clara, sofreu obras recentes, assim como a freguesia de Marvila, nomeadamente junto ao metro da Bela Vista, goza de novos parques infantis e desportivos, construídos em zonas verdes e desabitadas. Não nego a importância dos projetos nem o impacto positivo que terão na população. A minha questão é outra e tentá-la-ei ilustrar com o seguinte exemplo: na já referida talk do Festival Política, perguntei a Brito Guterres e a moradores de vários bairros, que o acompanhavam, de que forma as associações e os próprios habitantes tinham alguma palavra a dizer sobre aquilo que era implementado na zona por parte dos municípios, ou seja, se eram sondados ou se tentavam, de outra forma, saber a sua opinião e necessidades. Antes de me responderem com exemplos que comprovavam a ideia que já tinha – o Estado toma medidas sem atentar naquilo que são as necessidades concretas e reais da população – riram-se entre dentes. Suponhamos, sendo este exemplo real, que os habitantes têm a necessidade de ter um parque infantil e decide-se proceder à sua construção, mas este fica localizado numa zona de acesso perigoso para o público-alvo, neste caso, as crianças. Qual é, então, a sua utilidade prática? Não nos esqueçamos que a maioria destes pais têm horários de trabalho terríveis, que não lhes permitem, muitas vezes, acompanhar o percurso dos filhos na escola, quanto mais levá-los ao parque. De novo, confrontamo-nos com as decisões superficiais e desajustadas levadas a cabo pela esfera pública. Acrescento, ainda, a este ponto que, apesar de existir dinheiro para parques e jardins deslocados, o apoio a associações que trabalham no terreno é praticamente inexistente.
Para concluir, sublinho o que parece ser óbvio, mas que, ainda assim, é esquecido. Os habitantes do bairro são pessoas, famílias, crianças, cidadãos e cidadãs que habitam a mesma cidade que nós, são imigrantes que partiram rumo a melhores condições de vida – tal como nós, portugueses, o fizemos em massa no século passado para, por exemplo, França. Neste sentido, não é justo que a sua morada seja requisito à busca de emprego, não é justo, sequer, que a sua zona de residência seja apelidada de J, M ou N1, apenas para os senhores que entregam pizza saberem mais facilmente onde não podem ir entregar essa mesma pizza. Não é justo estes pais não terem horários de trabalho que lhes permitam acompanhar os filhos; que a sua arte e os seus talentos – entre eles destaca-se a dança e o rap – sejam ignorados. Não é justo que tenham acessos complicados ao resto da cidade, nem que a sua opinião pouco ou nada conte para quem tem o poder de interferir nas suas vidas. Resta-me realçar, pela experiência que tenho tido, que estes bairros são lugares encantadores. As crianças gozam de uma liberdade que lhes permite encarar a felicidade de outra forma, brincam na rua despreocupadamente, jogam jogos de tabuleiro e os telemóveis nem lhes fazem falta nenhuma. Juntamente com o resto dos habitantes vivem, na grande maioria, um espírito de entreajuda, bastante familiar. Lá sabe-se o que é ter verdadeiramente vizinhos e juntos encaram os problemas com uma coragem que a vida, por todas as razões supracitadas, os tem vindo a habituar.
Espero que, num futuro próximo, os políticos, governantes e cada um de nós, olhe para tudo isto de forma oposta; espero que a realidade seja pintada de outra cor, idealmente, uma cor igual para todos.
Fotografias de Marta Vicente