Sérgio Godinho fez o Coliseu do Porto gritar a uma só voz a democracia e o público reforçou “fascismo nunca mais”
Antes do concerto em si, que encheu o coração dos portuenses neste regresso de um filho da Invicta, vamos recuar a 1971, quando Sérgio Godinho gravava “Os Sobreviventes”, em Paris, pela mesma altura em que José Mário Branco gravava “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, e José Afonso gravava “Cantigas de Maio”. O disco seria, depois, retirado das lojas, mas isso não o impediu de ganhar prémios na altura, um então “desconhecido” que tinha coisas a dizer e chegou a enfrentar, também, a prisão: esteve preso duas vezes no Brasil.
Sendo reconhecedor do que Sérgio Godinho significa e com um carinho especial por, afinal, ter partido para o mundo, mas tendo no Porto o seu ponto de partida e origem, no dia 23 de Março o público que rumou ao concerto estava ansioso por vê-lo e só assim se explica a grande ovação inicial, motivada tanto pela arte de Sérgio Godinho, como pelo desejo e necessidade de que um espetáculo destes tivesse lugar. Afinal, há um contexto nacional a ter em conta, numa altura que coincide com a celebração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Talvez por isso, quem assistia, se tivesse despedido do artista com a seguinte tomada de posição e afirmação: “25 de Abril sempre, Fascismo nunca mais.” A liberdade e conceito de humanidade ainda não deixaram de querer sair à rua, e foi esse o testemunho final que o coliseu quis deixar.
Com início marcado para as 21h30 e acabando já depois da meia-noite, Sérgio Godinho percorreu os êxitos da sua carreira, com temas como “Charlatão”, de “Os Sobreviventes”; “Liberdade”, com a mítica frase, “paz, pão, habitação, saúde, educação”, de “À Queima-Roupa”; não deixando de relembrar histórias como as que se encontram por trás de “Domingo no Mundo”, que retrata o trabalho infantil, do álbum homónimo de 1997. Mas não só, José Mário Branco não deixaria de ser relembrado, afinal, “Mariana Pais, 21 anos” seria composição do autor de “FMI”, com letra de Sérgio Godinho. Mas uma das grandes surpresas, sem dúvida, chegou com a interpretação dos “Vampiros”, no encore, mostrando que a memória de José Afonso “Zeca Afonso” se encontra bem viva.
Quem achava, porém, que pelo facto de Sérgio Godinho ter já 78 anos este seria um concerto calmo e para assistir de forma sossegada na cadeira, enganou-se redondamente. Com um público heterogéneo nas idades, a cada passo pessoas de diferentes gerações preferiam levantar-se das suas cadeiras e movimentar o corpo tal como a música pedia: mérito de Sérgio de Godinho e, também, dos seus assessores que o acompanhavam de forma diligente e com a energia mais do que necessária, com a excelência dos arranjos.
Um mestre das músicas e das palavras, a sua spoken word esteve sempre evidente, ou não considerasse também a excelência da oralidade e as rimas subjacentes de que gosta. Aliás, no ciclo de conversas Porto de Encontro, para o qual foi convidado dia 24 de Fevereiro, na biblioteca Almeida Garrett, no Porto, para a apresentação do seu recente livro “Vida e Morte nas Cidades Geminadas”, que a CCA também assistiu, focou-se bastante a oralidade, o seu gosto por rima, como ainda antes de livros a oralidade era a chave para a transmissão das histórias, sem esquecer, claro, a relação da palavra e da música.
Se Sérgio Godinho é incontornável na intervenção e já construiu a sua história inegável, tal não o impede de olhar sempre para o futuro. Quando está muito tempo sem criar fica nervoso, tal como o confessou na biblioteca Almeida Garrett a 24 de Fevereiro, mas sabe também olhar para as novas gerações e deixar e partilhar legado, acima de tudo. É aqui que entra Garota Não, convidada para este périplo de 4 concertos entre Lisboa e Porto. A cumplicidade musical, respeito mútuo e amizade foi inegável e pôde-se constatar tanto na interpretação que fez de “Balada de Rita” mas, também, da homenagem que fez a Sérgio Godinho através de uma música que compôs para o efeito, “Diga 33”, com uma letra que agrega 33 títulos de canções de Sérgio Godinho. Esta seria a sua primeira vez nos coliseus desta forma (a primeira vez no Coliseu dos Recreios e a segunda vez no Coliseu do Porto) mas não se esqueceu de levar a pessoa que a ensinou a ler e a escrever, e que a fazia escutar Sérgio Godinho também, ao espetáculo para a ver actuar.
Garota Não, não seria, no entanto, a única convidada. O grupo Canto Nono, octeto vocal que se insere na tradição da música acappella, também animou o concerto com o seu grande jogo de vozes. Deixamos, também, um destaque. Enquanto a CCA esperava para poder entrar para a sala de espectáculos, foi-lhe dada um folheto, da Tradisom, que anunciava o duplo LP “A Força (o Poder) Da Palavra – Um canto a José Mário Branco”, de Canto Nono. O LP vai ter um booklet de oito páginas com o registo em vídeo e áudio do concerto do mês de Abril de 2023 no Coliseu do Porto. As surpresas não acabaram por aqui. Sérgio Godinho apresentou ao Porto, após ter mostrado também no Coliseu de Lisboa, a canção inédita “A Big Sale da Caridade”.
De tempos a tempos devemos olhar para os exemplos. Notou-se bem que o Coliseu do Porto esperava por Sérgio Godinho e pelas canções e palavras que ainda tem dentro de si. O bem está na humanidade, na partilha, na arte. A democracia passou pelo Coliseu, e o público não a quis deixar partir.
As fotografias usadas neste artigo são do concerto de Lisboa.