“Set My Heart On Fire Immediately”, o delicado novo álbum de Perfume Genius

por Bernardo Crastes,    15 Maio, 2020
“Set My Heart On Fire Immediately”, o delicado novo álbum de Perfume Genius
Capa do álbum. Fotografia de Camille Vivier
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Perfume Genius abre o seu novo álbum, Set My Heart on Fire Immediately, com uma afirmação potente e que nos agarra a atenção: “Half of my whole life is gone”. Ao falar sobre a canção, Mike Hadreas diz que, após escrever essa primeira linha, tinha a opção de seguir um caminho entre o devastador e o esperançoso. Ao longo da sua carreira de pouco mais de 10 anos, o artista escreveu algumas das canções mais devastadoras em memória recente, testemunhos de experiências conturbadas e histórias de personagens magoadas e sofredoras. Desta vez, Mike optou pela esperança, uma escolha que considera ser sempre “deliberada”. Esta manifesta-se ainda no som de “Whole Life”, a canção que abre o disco. A música é bonita e delicada, com uma leveza já anteriormente presente em algumas das baladas de Perfume Genius, mas aqui manifestada de forma mais optimista.

O fantástico primeiro single“Describe” — e uma das melhores canções do ano — pega em estados de espírito sombrios. De facto, são tão sombrios que precisamos que alguém nos descreva como é a bondade, para que a reconheçamos de novo. Soa a algo brutal e potencialmente depressivo, mas o fuzz acolhe-nos e a slide guitar exalta a busca pelo positivismo, em vez de nos fazer chafurdar no negativismo. As canções equilibram os impulsos de Mike, que afirma sempre ter “querido muito de uma vez, imediatamente”, demonstrando um lado mais paciente e maduro de alguém que quer canalizar essa fogosidade para um produto mais focado. Depois dos extremos do excelente Too Bright e do bombástico No Shape (que admitidamente cresceu aos meus olhos nos últimos anos), Set My Heart on Fire Immediately é uma nova fase de um artista que aparenta estar ainda mais em controlo da sua arte e da sua mensagem.

Perfume Genius / Fotografia de Milan Zrnic

Quando o disco aumenta o ritmo, encontra alguns dos seus melhores momentos. “Without You” é puro êxtase, com o seu ritmo saltitante e teclas perfurantes, e letras em que descrições de sentimentos se atropelam de forma vertiginosa: “It’s the strangest feeling / Unknown even / Almost good / It’s a blurry shape / It’s a jumbled tape / But sound”. O segundo single“On the Floor”, repete a façanha de forma mais dançável. Ao longo de toda a canção, a voz de Mike Hadreas anda na corda bamba entre fragilidade e delírio, num equilíbrio glorioso. “Your Body Changes Everything” traz à mente os sintetizadores mais viciosos de Too Bright. O clímax de “Nothing at All” é indutor de arrepios, com a sua batida estaladiça e ritmo guerrilheiro, após um crescendo liderado por um sintetizador envolvente, quase quente. Nessa canção, Mike consegue ainda com que o swagger das frases “I got what you want babe / I got what you need son” seja suplantado pela afirmação desarmante de que o que ele tem para oferecer é nada, “nothing at all”.

O aparato visual do álbum desafia as noções de masculinidade, com Mike a assumir o papel do clássico arquétipo viril. Na capa de “Describe”, coberto de fuligem, enverga uma marreta e vê-se rodeado de fumarada. Na capa do álbum, olha directamente para nós, com uma expressão resiliente e algo enigmática. Associar essa personagem a canções tão pessoais como a subtil e bela “One More Try” ou a demasiado-descritiva-para-ser-ficção “Jason” é suficiente para nos fazer repensar o papel masculino.

Nesta última, o falsete e cravo delicados ancoram a história comovente de uma personagem em conflito consigo mesma — “Clumsy, shakily / He ran his hands up me / He was afraid / Tears streaming down his face”. Aqui, Mike orgulha-se de assumir uma posição maternal e reconfortante, cantando “Jason there’s no rush / I know a lot comes up / Letting in some love / Where there always should have been some”. O final revela-se injusto, seja por Jason ter dificuldades a aceitar a sua sexualidade ou por alguma atrofia emocional, magoando Mike no processo, que se vinga ao roubar 20 dólares das suas calças. O artista revisita este episódio formativo através da sua habitual maneira descritiva — não esquecer o seu relato arrepiante de um romance proibido em “Mr. Peterson”, do álbum de estreia —, mas com a mentalidade de alguém que cresceu para aprender a reconhecer e aceitar as falhas dos outros, pois também se assume regularmente como uma pessoa imperfeita.

As suas imperfeições normalmente são canalizadas para canções maravilhosas, mas o álbum acaba por ter dois pequenos tiros ao lado. O pico sónico de “Some Dream” torna-se algo cansativo ao fim de poucas audições, mas compensa um pouco pelo seu outro angelical e quase dissonante. “Just a Touch”, apesar de um baixo sedutor e guitarra hipnótica, passa despercebida, especialmente depois da mais experimental “Moonbend”, que oscila entre a tranquilidade e o desconforto com mestria.

Este álbum cimenta a posição de Mike Hadreas como um compositor e escritor fenomenal. A evolução da sua carreira é uma das trajectórias mais interessantes da música contemporânea e vale a pena ser explorada. A sua música, à semelhança de artistas como Mitski ou Angel Olsen, não tem receio de escavar traumas e sentimentos reprimidos, trazendo à superfície as emoções cruas de quem está em contacto com o seu eu mais profundo. Em Set My Heart On Fire Immediately, a delicadeza facilita o confronto dessas emoções e assegura-nos da sua importância. Há que não ter receio de sentir, imediatamente.

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