“She is the Other Gaze” e a “memória colectiva” da invisibilidade feminina
Karin Mack, Linda Christanell, Lore Heuermann, Margot Pilz e Renate Bertlmann percorrem o estúdio da cineasta Christiana Perschon e contam as suas histórias. Falam das dificuldades em, nos anos 70, pertencer a uma cena artística de Viena dominada por uma presença masculina. Lembram o machismo das grandes estruturas para a cultura numa Áustria do passado. Recordam o desrespeito, a discriminação, a objectificação, a luta ardente e incessante por visibilidade, o paternalismo de que foram alvo.
Ouvimos as cinco vozes e vemos as interacções que têm com as suas obras antigas, mas não sabemos quem está a dizer o quê. Isso não importa muito, assegura-nos Perschon, no Café Rivoli, a dois dias da exibição do documentário She is the Other Gaze no Porto/Post/Doc. A realizadora diz que “estas são histórias individuais, mas remetem para uma memória colectiva”.
Perschon, 41 anos, partiu em busca de “mulheres inspiradoras”, que começaram as suas carreiras nos anos 70, e que revelavam, através do seu corpo de trabalho, um vincado “sentido de activismo perante o sistema patriarcal” no qual tinham de se movimentar. As cinco histórias que compõem She is the Other Gaze são contadas por mulheres que hoje são reconhecidas enquanto pioneiras das artes visuais feministas e experimentais na Áustria, mas que precisaram de fazer força para abrir portas que durante muito tempo permaneceram trancadas. Artistas que “tiveram as suas exposições ou instalações” na altura, mas que só agora, aos 70 e tal ou 80 e poucos anos, começam a “ser descobertas” e a receber o reconhecimento devido.
O trabalho que ao longo das décadas desenvolveram, assinala Christiana Perschon, “é indicativo das coisas contra as quais lutavam”. Basta olhar, por exemplo, para Sekundenskulpturen, de Margot Pilz, em que as fitas métricas usadas para tirar as medidas prendem a mulher e despem-na da liberdade de se mover. Podemos olhar ainda para Karin Mack e Bügeltraum, uma série de quatro fotografias a preto e branco tiradas em 1975: nelas, a fotógrafa passa a ferro diversos panos de cozinha, troca a camisola e as calças de ganga com que se apresenta por um vestido preto, e, num último momento, aparece deitada por cima da tábua com um véu sobre a cabeça. O National Museum of Women in the Arts menciona a “morte da dona de casa”, e destaca “um corpo que se torna parte da tábua de engomar”, ilustrando a identidade de Mack “enquanto um objecto e não uma pessoa”.
“As galerias diriam: ‘Nós não expomos obras de mulheres aqui. Fim da história’. Esta era a forma habitual de humilhar uma pessoa”, observa a autora de She is the Other Gaze. Christiana Perschon acredita que a balança está a ficar mais equilibrada nos dias de hoje, pelo menos na Áustria. “Já temos mulheres a assumir cargos importantes e influentes em grandes instituições. Temos curadoras e directores de museus. Isso é algo que não se via na altura”, revela. Para a cineasta, “ainda não estamos em pé de igualdade”, mas começa a haver uma mudança estrutural: “estas mulheres tinham um pequeno grupo de apoio – é por isso que conseguiram chegar tão longe e estão agora a ser apreciadas –, mas as coisas funcionavam de uma forma completamente diferente”, conclui a realizadora.
No filme, a artista plástica Iris Dostal aplica várias camadas de giz sobre telas brancas, preparando-as para novas pinturas. Isto, para Christiana Perschon, assume um significado simbólico, pois representa uma oportunidade que Pilz, Mack, Christanell, Heuermann, Bertlmann e tantas artistas como elas têm de “reescrever a história”. Em She is the Other Gaze, o estúdio de Perschon serve como um ponto de encontro, onde duas gerações diferentes reflectem sobre uma luta que em muito mudou mas nunca acaba, e onde, lê-se no site oficial da cineasta, o acto de ver pode transformar-se num “encontro através dos olhos dos outros”.
She is the Other Gaze faz parte da secção Identidades da sexta edição do Porto/Post/Doc.