“Shoplifters” permite-nos escolher dar um murro na mesa
O LEFFEST’18, Lisbon & Sintra Film Festival 2018, começou a 16 de Novembro, e vai até 25 de Novembro, e foi lá que vimos este “Shoplifters”, de Hirokazu Koreeda.
Após se ter aventurado pelos terrenos do crime drama com “The Third Murder”, Hirokazu Koreeda volta à temática onde se sente melhor, os laços familiares, demonstrando uma vez mais porque é considerado o Yasujirô Ozu contemporâneo. Em “Shoplifters”, filme que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes, Koreeda volta a jogar com o conceito de família para construir um belo exercício de observação, ainda que com alguma interferência (algo que Ozu não fazia), sobre a natureza da mais básica instituição social e cultural humana, tantas vezes pintada no seu próprio subgénero do cinema japonês: a família. Através de uma lente hiper-realista, desenrolamos, fio a fio, as ligações entre cada um dos membros deste agregado, o que os une, o que os uniu e poderá unir, questionando a dicotomia afecto versus laços de sangue como verdadeira natureza e origem da relação familiar.
Koreeda não se fica pelas temáticas já observadas pelo mestre Ozu ao longo de décadas até aos anos 60, mas antes o procura igualmente na estética de realização. Planos aprimorados, sempre geométricos, atafulhados, invasivos, penetram a casa e cada um dos 6 protagonistas, todos soberbos actores, com uma palavra especial para mais um excelente trabalho da actriz Kirin Kiki, falecida recentemente, e que interpreta a avó. “Shoplifters” faz o chamado character study de forma lenta, permitindo ao espectador um confortável papel de observador que se deixa penetrar por aquilo que vê: as chamadas pessoas invisíveis que a lente moderna prefere empurrar para debaixo do tapete, em particular num Japão tradicionalista que cada vez menos o é.
Ao contrário do que fazia Ozu, que apenas filmava e reconhecia esse tradicionalismo, nunca interferindo com ele, o que lhe vale infelizmente alguns rótulos menos positivos vindos de um público cada vez menos conservador, Koreeda, para o bem e para o mal, enfrenta subtilmente esse tradicionalismo e deixa recado sobre a forma como devem ser interpretadas as barreiras da tradição familiar. O realizador não se fica pela observação, numa linguagem semi-documental, dedicando o último terço do filme à dissecação objectiva daquilo que apresentou, para devastação sentimental do espectador. “Shoplifters” não dá o murro no estômago duro e cru que Ozu tantas vezes ousou dar nas suas inúmeras obras-primas, mas dá-nos todas as ferramentas para sermos nós próprios a escolher dar um murro na mesa.