“Shy”, de Max Porter: caminhar em carne viva
A ressonância de “Shy” (Elsinore; trad. Manuel Alberto Vieira) põe-nos em carne viva.
Esta angústia é-nos familiar, em maior ou menor medida.
O adolescente Shy (que pode ser traduzido por “tímido”) caminha com uma mochila cheia de pedras. Ele foge com bagagem pesada. Ele foge de toda a gente, mas não são as pessoas que o perseguem. Foge dele próprio, pronto para se suicidar. Tenta escapar de uma dor que o assaltou por inteiro, uma dor que instiga um desespero desconforme com o futuro.
“(…) se a vida é isto, toda esta tensão, toda esta pressão, é uma coisa insuportável, absolutamente insuportável, tudo um imenso tumulto, como pode alguém enfrentá-la (…)
Ele não encontra uma saída do labirinto.
Chumbou mais de onze vezes, foi detido aos 15, e foi expulso de duas escolas. A mãe, desesperada, não sabe o que mais há-de fazer.
“Ouve-me, Shy. Meu pequeno. Meu filho. Isto são fármacos para as dores. Por amor de Deus, isto são os comprimidos que a tua avó tomava quando estava a morrer. O que é que estás a fazer?
Por favor, responde-me: o que estás a fazer?
Por favor, responde-me: de que queres tu fugir?
Que dor é essa que te faz sentir necessidade de tomar isto? Ou estás a fazê-lo por mera diversão?
Por gostares da sensação de alheamento da realidade? Há alguém que te esteja a pressionar a fazer isto? É o Shaun? Fala comigo, suplico-te.”
É enviado para um internato onde conhece outros como ele. É na fuga da instituição, com as pedras às costas, que o leitor o conhece. Shy caminha para o rio para se afogar.
Só há um analgésico que resulta: a música.
Esta sua benevolente dependência do walkman, bolha que o isola, contrasta com a dependência da cocaína, comprimidos e haxixe. No fundo, a raiz é a mesma. Ele precisa de adormecer a dor, nem que seja por um momento só.
As oscilações constantes de humor põem em causa as poucas e débeis relações com as outras pessoas. Os assomos de violência surpreendem, e ele castiga-se com automutilação.
O caminho de Shy de autodescoberta e pacificação é magistralmente narrado por Max Porter.
As diferentes vozes narrativas dão um ângulo mais alargado do problema e complementam o psicologismo do personagem. O autor inglês explora a plasticidade estética do grafismo (diferentes tipos de letra, diferentes tamanhos), embora seja mais conservador neste livro do que foi em “Lanny” ou “O Luto É a Coisa com Penas”.
A incapacidade de sair do desespero é espelhada em frases sem verbo, esculpidas e cheias de arestas. Max Porter coloca a acção de lado porque tudo o que se passa aprisiona o personagem, tira-lhe o fôlego, acentua a solidão, o desenraizamento e a depressão. Em outras circunstâncias, tal qual a mudança de humor de Shy”, a acção entra em catadupa com repetição verbal que emula a desarrumação emocional e um cérebro sempre a correr para lado nenhum. Numa mente em turbilhão, os pensamentos dispersam-se em sentidos opostos e tudo está desarrumado. Porter consegue incutir essa ideia com perspectivas e realidades sobrepostas num tempo que se faz uno. A fluidez é mantida, apesar de não ser nada fácil. Os capítulos curtos ajudam a manter a atenção do leitor.
Max Porter é um autor a seguir de perto. Os três livros publicados pela Elsinore demonstram um autor que corre riscos, um autor que inova sem abdicar da história.
É essa história e a brilhante caracterização de Shy que leva o leitor a torcer pelo adolescente, a dar-lhe o braço para ele não cair.
“Toca a mexer, Shy.”