“Shy”, de Max Porter: caminhar em carne viva

por Mário Rufino,    15 Dezembro, 2023
“Shy”, de Max Porter: caminhar em carne viva
Capa do livro

A ressonância de “Shy” (Elsinore; trad. Manuel Alberto Vieira) põe-nos em carne viva. 
Esta angústia é-nos familiar, em maior ou menor medida. 

O adolescente Shy (que pode ser traduzido por “tímido”) caminha com uma mochila cheia de pedras. Ele foge com bagagem pesada. Ele foge de toda a gente, mas não são as pessoas que o perseguem. Foge dele próprio, pronto para se suicidar. Tenta escapar de uma dor que o assaltou por inteiro, uma dor que instiga um desespero desconforme com o futuro. 
“(…) se a vida é isto, toda esta tensão, toda esta pressão, é uma coisa insuportável, absolutamente insuportável, tudo um imenso tumulto, como pode alguém enfrentá-la (…) 
Ele não encontra uma saída do labirinto. 

Chumbou mais de onze vezes, foi detido aos 15, e foi expulso de duas escolas. A mãe, desesperada, não sabe o que mais há-de fazer. 

“Ouve-me, Shy. Meu pequeno. Meu filho. Isto são fármacos para as dores. Por amor de Deus, isto são os comprimidos que a tua avó tomava quando estava a morrer. O que é que estás a fazer?  
Por favor, responde-me: o que estás a fazer?  
Por favor, responde-me: de que queres tu fugir?  
Que dor é essa que te faz sentir necessidade de tomar isto? Ou estás a fazê-lo por mera diversão? 
Por gostares da sensação de alheamento da realidade? Há alguém que te esteja a pressionar a fazer isto? É o Shaun? Fala comigo, suplico-te.” 

É enviado para um internato onde conhece outros como ele. É na fuga da instituição, com as pedras às costas, que o leitor o conhece. Shy caminha para o rio para se afogar. 
Só há um analgésico que resulta: a música. 

Esta sua benevolente dependência do walkman, bolha que o isola, contrasta com a dependência da cocaína, comprimidos e haxixe. No fundo, a raiz é a mesma. Ele precisa de adormecer a dor, nem que seja por um momento só. 

As oscilações constantes de humor põem em causa as poucas e débeis relações com as outras pessoas. Os assomos de violência surpreendem, e ele castiga-se com automutilação. 

O caminho de Shy de autodescoberta e pacificação é magistralmente narrado por Max Porter. 
As diferentes vozes narrativas dão um ângulo mais alargado do problema e complementam o psicologismo do personagem. O autor inglês explora a plasticidade estética do grafismo (diferentes tipos de letra, diferentes tamanhos), embora seja mais conservador neste livro do que foi em “Lanny” ou “O Luto É a Coisa com Penas”. 

A incapacidade de sair do desespero é espelhada em frases sem verbo, esculpidas e cheias de arestas. Max Porter coloca a acção de lado porque tudo o que se passa aprisiona o personagem, tira-lhe o fôlego, acentua a solidão, o desenraizamento e a depressão. Em outras circunstâncias, tal qual a mudança de humor de Shy”, a acção entra em catadupa com repetição verbal que emula a desarrumação emocional e um cérebro sempre a correr para lado nenhum. Numa mente em turbilhão, os pensamentos dispersam-se em sentidos opostos e tudo está desarrumado. Porter consegue incutir essa ideia com perspectivas e realidades sobrepostas num tempo que se faz uno. A fluidez é mantida, apesar de não ser nada fácil. Os capítulos curtos ajudam a manter a atenção do leitor. 

Max Porter é um autor a seguir de perto. Os três livros publicados pela Elsinore demonstram um autor que corre riscos, um autor que inova sem abdicar da história. 

É essa história e a brilhante caracterização de Shy que leva o leitor a torcer pelo adolescente, a dar-lhe o braço para ele não cair. 
“Toca a mexer, Shy.” 

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