“Silêncio na Era do Ruído”, de Erling Kagge: uma reflexão sobre diferentes significados do silêncio
Considero importante começar com uma pequena advertência: por causa da enorme quantidade de espaço ocupado pelo género nas estantes das livrarias e apesar de o poder ser, se quisermos, este não é um livro de autoajuda.
A antítese entre silêncio e ruído é abordada de forma pragmática nesta obra da autoria do multifacetado autor norueguês Erling Kagge, pai, explorador, editor, colecionador de arte contemporânea, advogado, empresário e político. Em o “Silêncio na Era do Ruído”, Kagge oferece-nos uma análise profunda e intimista da importância do silêncio no seu (nosso) dia a dia. Tendo sido publicado em 2017, pela chancela da Quetzal Editores, acredito que o teor deste livro ganha cada vez mais importância num mundo em que abunda a hiperestimulação sensorial. O papel do silêncio (e da falta dele) precisa de ser continuamente repensado e este repensar dos paradigmas que englobam o tema reforçou-se em contexto de pandemia. É sem dúvida importante analisarmos a sua influência no nosso bem estar pessoal e colectivo. O repensar e refletir que este livro nos oferece, parte das seguintes premissas: “O que é o silêncio? Onde é que se encontra? Por que razão é agora mais importante do que era dantes?”.
Repartindo o livro em 33 reflexões, o autor explora os diferentes significados do silêncio na sua perspectiva pessoal, não se coibindo de tentar contextualizar as suas experiências num espectro mais abrangente da percepção humana e das relações interpessoais. O autor tem também perfeita noção que teve um contacto com o silêncio de uma forma extrema e inalcançável ao cidadão comum através da sua atividade enquanto explorador, como na sua expedição ao Polo Sul. Esta travessia a solo com uma caminhada de 1340 km em 51 dias completamente desconectado do mundo, molda intensamente a maneira como ouve, vive, sente e absorve o silêncio e o ruído. Até o espaço entre ambos os espectros ficou indelevelmente marcado.
Uma das ilações mais interessantes que Kagge retira das suas reflexões é o quão estranhamente difícil é lidar com o silêncio prolongado, para a maioria das pessoas. Dando destaque tanto ao conforto como ao desconforto que provoca. Tendo sempre presente o seu privilégio por ter acesso facilitado à natureza, pela sua origem geográfica, Kagge contextualiza essa facilidade com toda a sua agenda atribulada que o leva a visitar todo o tipo de meios urbanos ruidosos, dos dias de trabalho em Oslo às deslocações em negócios, às conferências ou aventuras como a que teve no “mundo subterrâneo” de Nova Iorque. Após pesar esta multitude de contactos com o ruído e silêncio que lhe pautam o dia a dia, o autor remete para a forte possibilidade de que a obtenção desse silêncio depende em boa parte da nossa capacidade pessoal de abstração do ruído que nos sufoca: “O silêncio é sobretudo uma ideia. Uma noção. O silêncio que nos rodeia pode conter muito, mas o tipo de silêncio mais interessante é o interior. Um silêncio que cada um de nós tem de criar”.
Erling Kagge refere mesmo a importância de como o “silêncio relativo” que consegue encontrar no quotidiano lhe acalma o desejo pelo silêncio “perfeito” que encontra nas suas caminhadas na natureza extrema. “O mais importante de tudo, como reza um velho ditado norueguês, não é tanto aquilo que somos, mas aquilo que fazemos com o que nos acontece. Para mim, o silêncio da natureza tem o máximo valor. É aí que me sinto mais à vontade. No entanto, se não tivesse sido capaz de experimentar o silêncio no meio do bulício citadino, o meu desejo de silêncio seria imenso e teria a necessidade de regressar mais vezes ao contacto com a natureza.”, pode ler-se em “Silêncio na Era do Ruído”.
O autor toca ainda em pontos basilares e intemporais da vivência particular do silêncio, sendo de destacar que o silêncio que para uns seria um luxo, para outros pode ser desesperante ou até mesmo esmagador, tudo depende dos momentos.
“Frequentemente, opto por fazer não importa o quê, em vez de tentar encher o silêncio com a minha própria pessoa. A pouco e pouco, cheguei à conclusão de que a origem de muitos dos meus problemas reside precisamente nessa luta. Claro que não sou a primeira pessoa a ter este género de pensamentos. O filósofo e teórico do aborrecimento Blaise Pascal iniciou este tipo de exploração no século XVII. «Todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade de o homem ficar tranquilamente sentado sozinho no seu quarto.» Portanto, o desconforto de estarmos sós, contendo a língua e limitando-nos simplesmente a ser, não começou com o advento da televisão nos anos 50, nem com a chegada da Internet nos anos 90 ou com os smartphones nos nossos dias.”
“Silêncio na Era do Ruído”, de Erling Kagge
Ou seja, os “defeitos” humanos que afetam a nossa capacidade de apreciar o silêncio pelo que é sempre estiveram presentes, apenas lhes vamos adicionando novas camadas de complexidade na busca constante pela supressão do desconforto de ser.
Em suma, este livro é essencialmente uma dissertação filosófica informal executada de forma descontraída e muito pouco tradicionalista ou académica, trazendo às massas um tema complexo, de forma bastante acessível e compreensível. Podemos constatar que boa parte das suas reflexões centram-se na dicotomia de ideias e conceitos, deixando espaço ao leitor para absorver o conteúdo e estabelecer as suas próprias conclusões e dúvidas. Erling Kagge revela-se um autor de sentido apurado para correlacionar o tema do silêncio e do ruído com noções de filosofia e temas contemporâneos como o digital. Insere com facilidade conceitos diversos na sua linha de pensamento, com peso e medida e de forma despretensiosa. Alude por exemplo a uma panóplia de referências para sustentar os seus pensamentos, estas incluem desde Pascal, Wittgenstein e Kierkegaard a Rihanna e aos Depeche Mode, da filosofia, arte, música, desporto e ciências à pop culture. A utilização destas referências ecléticas ajuda a envolver o leitor de uma forma mais emocional e pessoal, para além do interesse racional e lógico que sustenta a obra. Destaca-se também como o autor dá a entender que este livro não é um livro de respostas, mas antes um conjunto de questões pessoais que o mesmo pode ter em comum com muitos de nós. Nesse sentido, fica esta sua reflexão:
“Não há nenhum livro escrito que possa dizer-nos mais do que aquilo que nós próprios experimentámos. Por isso, inspirem profundamente. Não é preciso muito para entender o silêncio e o modo como podemos ter prazer em desligar-nos do mundo.”