“Six Feet Under”: a série que faz perder o medo da morte
Somos, desde cedo, confrontados com o cenário da morte. São os nossos entes queridos que vão partindo, aos poucos, de quando em quando. Vão-se acumulando sensações cada vez menos agradáveis, mas que vamos percebendo que fazem parte da ordem natural das coisas. Enquanto uns partem, depois de deixarem o seu exemplo e o seu contributo no mundo, vemos outros a chegar, trazendo as boas graças que um nascimento também traz. É a tal renovação de gerações que a biologia fala. No entanto, esta área pouco fala daquilo que é o peso de alguém que chega à vida e de outro alguém que a deixa para os seus semelhantes. Essa história fica para várias representações, para várias expressões que as humanidades e as artes conseguem captar melhor, sem o rigor científico, mas com a familiaridade do dia-a-dia.
Revejo-me neste exemplo. Sempre vi a morte como algo de temor. O momento em que iria deixar de viver. Lá se iam as probabilidades de fazer aquilo que mais gosto: viver, conviver, rir, viajar e sonhar, claro está. A morte irá parar tudo isso, um dia destes. Até ao momento, no entanto, ele ainda não chegou. Porém, ia meditando naquilo que a morte acarretaria para mim e que já acarretou quando levou alguns dos meus conhecidos. Nada de muito profundo, é certo, mas a morte era posta numa perspetiva um pouco estranha, de grande desconhecimento e de muita desconfiança. No entanto, foi há poucos meses que, deambulando entre os filmes e as séries que constituem as expressões sobre a vida e a morte, chegou-me aos olhos Six Feet Under. Uma série da HBO, criada por Alan Ball, que estreou em 2001 e que contou com cinco temporadas. O tema, à primeira vista, nem me parecia apelativo. Eram as peripécias quotidianas de uma agência funerária Fisher & Sons e dos seus membros, o pai Nathaniel, a esposa Ruth, os filhos David, Nate e Claire, e o parceiro (Frede)Rico. Em seu redor, o polícia Keith, a massagista Brenda e o seu irmão, o artista Bill, assim como Vanessa, esposa de Rico. Funerais em todos os episódios, luto em todos eles. Seria uma série, decerto, pesadona e densa.
Dei por mim a ser surpreendido, como tanto gosto de ser. Dei por mim a rever-me em partes das facetas de quase todas estas personagens (as que mencionei atrás foram todas excelentemente bem interpretadas), diferentes entre si mas com histórias de vida que não pareciam ficção. Pareciam, sim, parte daquelas que vamos ouvindo no dia-a-dia, das histórias que os amigos contam sobre outros amigos e dos seus conhecidos. São as formas de ser e de estar de pessoas diferentes, com perspetivas distintas, com olhares sobre o passado, o presente e o futuro bem moldados e que entram, muitas vezes, em choque. Percebi que esta série era diferente das outras, que poderia entrar numa ficção demasiado perturbada e numa espiral recessiva. Six Feet Under deu-me uma sensação de humanidade que nenhuma das minhas séries prediletas o havia feito. House of Cards estava à distância, lá para os Estados Unidos; The Office passava-se na surrealidade de um escritório (algumas surpresas no decorrer de Six Feet Under para quem também gostou); Sopranos estava numa máfia que se tornou mais mitológica que real (embora as entrelinhas me saibam desmentir). Já Six Feet Under estava ali, com os dilemas que a sociedade ocidental lida no seu dia-a-dia.
A sexualidade, as questões raciais e sociais, os vícios, as perturbações mentais, as traições, as trafulhices, os prazeres mundanos, as doenças. Os nascimentos, as mortes. A vida. A procura de algo mais em torno do fim da vida, que segue este percurso de constantes confrontos (e confortos). Tudo gira em torno da morte. É em torno desta agência funerária e da família Fisher que se desenha uma compreensão cada vez mais plena do significado da morte e do seu papel na própria vida. Enquanto a vida se detém a remoer na morte, a morte simplesmente é. A pessoa parte e só a memória perdura, por mais que, na série, os mortos vão trocando impressões com os vivos, iluminando-os para os que lhes escapa do seu dia-a-dia. A memória do que foi, enquanto, de uma plenitude de formas que a série não esconde, a morte pode chegar e ir. É a passagem que mais perdura no tempo e que consegue mesmo chegar à eternidade. Six Feet Under, na sua busca por perceber a morte durante as cinco temporadas, consegue um feito: humaniza a morte. Em todos os episódios, alguém morre. Alguém é chorado e celebrado, alguém é esteticamente retocado para que possa ser homenageado adequadamente uma última vez. O velório é uma celebração que ocorre em todos os episódios da série. O confronto com a morte é inevitável. As reflexões que as personagens fazem, assim como quem as observa e se revê nelas, seguem-lhe as pisadas.
Não nos deixemos enganar: Six Feet Under é muito mais do que uma série sobre quem morre e sobre o luto que é feito por respeito a quem morre. É uma série que nos faz olhar para a morte com um olhar universal, com um olhar de algo muito maior do que qualquer um de nós, ao mesmo tempo que nos inspira a viver, mesmo perante as nossas disfuncionalidades, as nossas fragilidades, os nossos erros. É uma série que também não exige a presença assídua de Deus para que se possa aceitar a morte em paz e em respeito para com a sua ordem, embora a enquadre, perante o peso que tem nesta dialética da vida e da morte. Six Feet Under consegue ser uma série que coloca a morte em discurso direto com a vida e com todas as suas facetas, com todas as suas vicissitudes e com todas as suas alegrias. A alegria do amor, da paixão, da paternidade/maternidade, da realização, da superação. As dimensões física, emocional, mental e até espiritual – é possível que esta exista sem Deus, quando a predisposição para que se compreenda a existência de algo mais está presente – cruzam-se aqui numa harmonia notável, que sabem colocar caminhos tão distintos – os tais que as personagens seguem – ao serviço deste tema nuclear, o da morte.
Com isto, vistas estas cinco temporadas, a morte mudou aos meus olhos. A arte tem destas coisas, quando nos conectamos às suas expressões, às suas realizações. Deixei de a tratar na terceira pessoa, com aquela desconfiança e com aquele temor. As lições e as perceções que se foram entrevendo no desenrolar da série permitiram-me olhar para a morte com maior aceitação, com maior naturalidade e, curiosamente, com maior respeito e atenção para a vida. O cliché está lá, o de aproveitar cada dia como se fosse o último. No entanto, o facto da morte aparecer sistematicamente em cada episódio, em cada dia de trabalho dos Fishers, leva a crer que aqueles que lá trabalhavam e que cresceram na realidade da agência funerária estavam despertos para isso. Se não estavam, a sua própria vida fez com que se tornassem. Por isso se torna tão interessante a relação que cada um vai construindo com a vida à sombra da morte. Por mais que não se sinta a sombra da morte de forma tão sistemática, ela vai aparecendo, de quando em quando, lembrando que estamos cá para viver e não há objetivo mais substancial que esse. Simplesmente viver, com maior ou menor dificuldade, com mais ou menos desafogo, mas sempre com a sensação de que cada dia é uma dádiva. Cumprido o objetivo, o passo seguinte será, muito natural e serenamente, o da morte. Six Feet Under marcou-me, assim, mais do que me sentir ouvido e sentido na vida e no pensamento de várias das personagens, da forma como a morte é tão comum e natural. O ter que ser tem esta força. E assim perdi o medo de morrer.