“Six Feet Under”, a série revolucionária sobre a morte e o luto

por João Estróia Vieira,    2 Dezembro, 2024
“Six Feet Under”, a série revolucionária sobre a morte e o luto
HBO/Everett

“Six Feet Under” (2001–2005), criada por Alan Ball, foi uma série revolucionária no panorama televisivo no início dos anos dois mil, distinguindo-se pela forma como abordou temas difíceis como a morte, a perda, o luto e a saúde mental. Exibida na “era dourada” da HBO, foi lançada num tempo em que esses assuntos ainda eram, em grande medida, tabus na televisão mainstream, sobretudo com uma série inteiramente dedicada aos mesmos, tornando-se assim um marco cultural por trazer estas questões para o centro da narrativa, envolvendo os espectadores num drama emocionalmente denso e profundamente humano. Ambientada numa funerária familiar, a Fisher & Sons (mais tarde Fisher & Diaz), a série transformou a inevitabilidade da morte numa lente e veículo para explorar a própria vida.

O formato de “Six Feet Under” era (e continua a ser nos dias de hoje) inovador e irreverente, misturando elementos associados normalmente ao estilo soap opera (novela) com drama psicológico e foi pioneiro ao mostrar a complexidade das emoções humanas de maneira honesta e sem medo de ser desesperançoso, ou bleak. Cada episódio começava com uma morte, muitas vezes absurda ou inesperada (que foram também espaço de criatividade pelas diferentes formas como nos eram mostradas), que dava o mote para os Fisher lidarem não só com o luto alheio mas também com as suas próprias questões por resolver. Essa estrutura narrativa permitia que a série explorasse as diferentes formas de enfrentar a perda, desde a negação à aceitação, enquanto refletia sobre como a morte é inevitavelmente um espelho e consequência da da própria vida.

A abordagem aberta e sensível à saúde mental também foi um dos grandes trunfos e “romper de parede” de “Six Feet Under”. A série apresentou personagens imperfeitos e fragilizados, e com profundeza na maneira como lidavam com traumas, depressão, ansiedade e conflitos existenciais. Nate Fisher (Peter Krause), por exemplo, enfrentou crises de identidade enquanto tenta equilibrar o desejo de liberdade com as suas responsabilidades familiares. Claire Fisher (Lauren Ambrose) passou por angústias típicas da juventude e início de idade adulta, enquanto Ruth Fisher (Frances Conroy) tenta conciliar os seus desejos reprimidos com a perda do marido. Estas narrativas foram vitais para desmistificar questões emocionais que muitas vezes são ignoradas, caricaturadas ou meramente abordadas de forma tangencial.

A autenticidade emocional da série foi amplificada por uma escrita irrepreensível num elenco brilhante, que trouxe uma profundidade rara às suas personagens. Michael C. Hall, como David Fisher, foi particularmente elogiado pela sua representação de um homem gay a lidar com o preconceito e conflitos internos numa época em que as narrativas LGBTQ+ ainda estavam por ter ascensão e devida normalização na TV. Frances Conroy, como a matriarca Ruth, e Rachel Griffiths, como Brenda, a parceira emocionalmente complexa de Nate, também entregaram performances inesquecíveis, equilibrando momentos de vulnerabilidade com força surpreendente. Esse elenco, aliado ao texto afiado e emocionalmente ressonante de Alan Ball, garantiu que a série tivesse um impacto duradouro, que se sente até aos dias de hoje e elevam “Six Feet Under” à categoria de séries imortais (irónico, numa série que aborda a mortalidade).

“Six Feet Under” destacou-se ainda por tratar a morte com uma combinação rara de realismo e simbolismo, muitas vezes empregando elementos surrealistas para dar forma às emoções internas dos personagens. As cenas em que os personagens interagem com visões dos mortos, especialmente com o patriarca Nathaniel Fisher (Richard Jenkins), proporcionavam uma introspecção rica sobre como as memórias e os legados moldam as vidas daqueles que ficam para trás. Essa fusão de realismo emocional e experimentação estética tornaram a série visualmente e narrativamente única.

Além de tudo o que já foi referido, a série conseguiu ainda capturar a universalidade do luto ao mesmo tempo que explorava as especificidades das experiências individuais. As histórias de clientes da funerária frequentemente refletiam os dilemas dos Fisher, criando uma narrativa interligada que enfatizava como a dor e a perda são experiências comuns e, no entanto, profundamente pessoais. Esta abordagem, que tratava a morte não como um evento singular, mas como uma parte intrínseca da existência, é, até aos dias de hoje, profundamente inovadora.

“Six Feet Under” teve um impacto cultural duradouro por abrir caminho para outras séries que lidam com temas igualmente complexos e sensíveis, com um legado que, se quisermos, pode ser visto em produções como “The Leftovers” ou “BoJack Horseman”, que também enfrentam questões de mortalidade e saúde mental com profundidade e nuance. Ainda uma pequena nota para a sequência final desta brilhante série que, ao som de Sia, com ‘”Breathe Me”, fica a ressoar inevitavelmente para sempre na nossa memória. Não só ao trazer o tabu da morte para o centro da conversa televisiva mas sobretudo a forma como o fez, “Six Feet Under” transformou a maneira como contamos histórias sobre a vida, o luto e o que significa ser humano.

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