‘Soldado Milhões’, uma tentativa humilde de fazer cinema de guerra em português
Realizado por Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, “Soldado Milhões” tem lugar de destaque pela sua humildade e ausência de pretensiosismos ou paternalismos (olhando directamente para Leonel Vieira e outros que tais), ainda que aqui exista a ambição de pelo menos tentar executar a raridade que é o género do cinema de guerra em Portugal. Desde logo o principal desafio de Soldado Milhões, o herói português da primeira guerra mundial que sozinho enfrentou hordas de soldados alemães permitindo a retirada dos seus companheiros, seria o de dar a volta às limitações orçamentais que uma produção de guerra (vistosa e dispendiosa) teria à luz da realidade da indústria portuguesa de cinema. Com efeito este “Soldado Milhões” aproxima-se quer visualmente quer narrativamente do glorioso Hacksaw Ridge, de Mel Gibson, que vimos recentemente, mas infelizmente (e porque não pode fazer mais), tem dificuldades em aprofundar os seus níveis de produção para algo mais que o mero testemunho de trincheira atabalhoado por uma certa teatralidade televisiva tão difícil de descolar do cinema português.
É difícil ser exigente com “Soldado Milhões”, que faz o que pode, de forma descomplexada e ciente das suas próprias limitações (seriam precisos muitos mais milhões para que este soldado ficasse em ponto de rebuçado), mas é possível reconhecer-lhe esse valor de esforço, com uma inteligente (pelo menos no papel) estrutura narrativa em formato episódico e de memória que ajuda a disfarçar a ausência de pontos de ligação dos acontecimentos passados em 1918, que alterna entre duas linhas temporais: o companheirismo entre soldados e a guerra em 1918 e um “presente”, anos mais tarde em 1943, onde um Aníbal Milhais mais velho enfrenta a sua própria imortalização enquanto herói e um stress pós-traumático formalmente pouco convincente. Dito assim, no papel, “Soldado Milhões” tinha tudo para ser um filme de belíssimo efeito, no entanto a realização, apesar de humilde e consciente das limitações de uma produção tão ambiciosa, falha na concretização narrativa, com personagens pouco ou nada amadurecidas, momentos dramáticos cujo peso falha completamente o alvo, até difícil de contextualizar, e uma sequência narrativa muito confusa, repleta de erros de continuidade, que nem os cortes episódicos para a linha narrativa do “presente” conseguem disfarçar.
O grosso da produção foca-se no cenário de guerra, ainda que em modo low budget (o único cenário de guerra propriamente dito é a trincheira onde a pequena guarnição portuguesa se encontrava), no entanto acaba por ser a tal elipse “presente” que observa um Aníbal Milhais mais velho o principal ponto de interesse dramático para o espectador, ao representar a sua relação com a filha enquanto caçam um lobo que anda a matar gado na região. Mesmo essa linha temporal sofre desses males que não conseguem descolar “Soldado Milhões” de um certo amadorismo, particularmente na sala de montagem, o que é uma pena.
A cena mais aguardada e que motiva a existência do filme, a resistência solitária de Aníbal Milhais perante hordas de centenas de soldados alemães, é executada de forma confusa, desconexa, e se não conhecêssemos a história dir-se-ia que o soldado Milhais enfrentou uma dúzia de soldados alemães para salvar meia dúzia de portugueses, e bem sabemos que esses não são os números. Tudo teria corrido melhor se o calor de Valongo de Milhais, em Murça, onde se desenrola o “presente”, pudesse dar espaço às episódicas memórias febris de Aníbal em jeito alucinatório de stress pós-traumático. Ao querer, em vão, ser realista e coeso, “Soldado Milhões” perde a ambiguidade que podia ter sido vantajosa no meio da sua produção minimalista. Não o fazendo, resta-lhe a honrosa função de homenagear um dos heróis da primeira guerra mundial de forma igualmente…honrosa.