Sophia, o louvor das coisas simples como substituição da auto-ajuda
Domingo, dia 6 de Novembro, Sophia de Mello Breyner faria 103 anos. Devo a Sophia a minha paixão pela poesia ou a maneira sublime como me ensinou a olhar o mundo natural. Mas a minha gratidão não se prende apenas por isso. Sophia fez-me perceber que um poema, como diria Manoel de Barros, é um inutensílio, na medida em que se uma chave inglesa serve para alguma coisa — tendo-lhe sido atribuída uma função específica para executar determinada tarefa —, um poema não serve para nada. A sua importância brota dessa capacidade, dessa habilidade de não se poder usar. A poesia descreve coisas do mundo e do Homem, mas não se prende pelos seus vícios, existe além das suas ambições ou necessidades e, acima de tudo, padece de uma eternidade própria das coisas maiores.
Sophia de Mello Breyner, sem nunca ter caído na tendência de ser demasiado sentimental, romântica, confessional ou intimista — típica de muita poesia daquele tempo e não só —, foi capaz de me ensinar a viajar com os sentidos, a “estar nu em frente às coisas vivas”, a perseguir o real, a procurar uma relação invulgarmente estreita — harmoniosa — com a natureza, a pôr todo o meu empenho na busca de um encantamento presente e vivo que existe à mercê do nosso olhar. Se a nobre tarefa de tantos poetas foi a de escrever, a de Sophia foi a de ver, ver bem e cantar como nenhum outro as coisas que nós amamos sem nunca termos percebido exatamente porquê.
Sophia de Mello Breyner, em cada livro, em cada verso, em cada palavra impressa com a justeza de quem sabe pôr as coisas no lugar certo, instiga-me diariamente para que não seja como a Mónica dos seus contos exemplares: “Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria. Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol. De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade”.
Regresso a Manoel de Barros como quem regressa a tempos de juventude. O poeta brasileiro escreveu que a poesia é a infância da língua e que os seus poemas são desenhos verbais, detalhando quase na perfeição o papel da poesia de Sophia, isto partindo do princípio que a poesia tem algum papel no mundo. E, tal como um desenho ou como o olhar pueril de uma criança — ao contrário das coisas que Mónica fazia —, um poema não serve para as coisas mundanas. Um poema não liga televisões como os botões de um comando, não nos ensina a gerir melhor uma empresa, não serve para comprar meias e rabanetes, fazer contas de matemática, separar o lixo pela cor do ecoponto ou cozinhar. Tudo aquilo que o ser humano, com bom senso e prudência, considerou ser útil para uma vida normal, bem vivida, equilibrada, os poetas não são capazes. Como escreve Filipa Leal: “Os poetas não servem para nada. Os poetas gostam de dormir até tarde, fumam e dormem de mais, apaixonam-se dia sim dia não, às vezes, pela mesma pessoa. Se os poetas fossem controladores aéreos havia tráfego de andorinhas”. Mas há qualquer coisa em nós não revelada à superfície que nos estimula a não sermos Mónicas, a não cometermos o erro clamoroso de renunciar à poesia, ao amor e à santidade. Nenhuma delas tem uma função visível, mas bradam alto ao nosso ouvido. Sem sabermos bem qual o papel que desempenham, temos apenas a certeza de que as desejamos ardentemente, por causa do vazio constante e palpável que habita no nosso coração, cujas ferramentas mundanas acima mencionadas não conseguem preencher. Dispomos de uma intuição qualquer que nos faz clamar por elas sem razão aparente e nada nem ninguém além da poesia, do amor ou da santidade silencia ou torna menos insuportável este grito, esta inquietação.
“Quem como eu em silêncio tece
Sophia de Mello Breyner
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?”
Se a poesia não tem função, se é inútil como a amizade ou o amor, se não satisfaz os meus desejos simples da mesma maneira que água tira a sede ou a comida tira a fome, por que razão perdemos tempo a ler poemas na escola, a falar sobre poesia e a fazer lavagens cerebrais a miúdos que deviam, antes de mais, gastar energia a aprender a pedir uma cerveja em estrangeiro ou a simular o IRS no site da autoridade tributária? Se não serve para nada — como não serve o amor e a amizade — porque é que é que existe?
Porque a poesia, como me ensinou Sophia, é um bem em si mesmo, é uma moral. “Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida”. Nem tudo é para ser útil, nem tudo é matemática e números exatos ou fatos comprováveis. Nesta equação da utilidade, num mundo dominado pela exatidão e pelas regras, a poesia vive das migalhas que aproximam o ser humano da sua casa de partida, das suas mais íntimas, quase inexplicáveis e inacessíveis vísceras. A poesia, porque não se vêem os seus efeitos, ao contrário de benzodiazepinas, confunde-se com o amor, com o bem, procura a justiça através de uma busca atenta e incessante, tenta alcançar a beleza, que é, no fundo, como me disse o arquiteto Manuel Aires Mateus, o que está certo, o que exalta a verdade e o que nos ampara de cairmos com estrondo nos desastres, nas tentações e no mal do mundo.
Sophia, na sua arte poética, refere que “Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor”.
Um poema é, no fundo, um olhar excessivo sobre as coisas, sem o qual nos perderíamos a meio do caminho, é uma estrela serena que guia os passos do Homem, como lemos no Cavaleiro da Dinamarca. As perguntas de que falam os poetas são as nossas perguntas. Os amores e desamores também. E o mesmo acontece com os desejos, as inquietações, as desilusões, as rotinas, a monotonia e os medos. É tudo matéria pura e humana. Sem poetas ou artistas não saberíamos ver com tanta exatidão. É que, ao contrário da nossa vida que nos distrai e corrói as pálpebras, os poetas olham. E não fazem mais nada para além de olhar, olhar bem, com uma atenção desmedida, com amor pelas “coisas visíveis”. E, nessa maneira própria de peregrinar com os sentidos, levam-nos por mares onde é mesmo urgente navegar.
É verdade que a poesia, por ser tão nossa, nos é, por vezes, inacessível. É preciso sair da ilha para ver a ilha, como nos esclarecia Saramago. Ler poesia pode causar um trauma irreversível, devido ao efeito nefasto do tédio, do enfado ou da incompreensão, como um texto em que até a nossa própria letra se torna indecifrável. É nesse campo em que Sophia joga como ninguém e pode ser “prescrita” em qualquer altura, ao contrário de outros poetas cujo tempo se torna fundamental para melhor os digerir. Sophia de Mello Breyner não é dominada pela forma e pelas regras — rimas e métrica —, antes as domina, ao pousar cada palavra, cada som, cada quebra de linha no lugar próprio, como se ali tivessem nascido, numa cadência simples, acessível, direta, inquestionável e, por isso, tangível e concreta como uma lança no coração.
Os livros mais vendidos de hoje são, regra geral, os livros de auto-ajuda, os livros das respostas imediatas, os livros da riqueza fast food. A realidade prova que não tem sido suficiente. Há desejos grandiosos, há desejo de verdade, há perguntas por responder, mas escasseiam respostas sérias ou profundas, à medida dessa grandeza. À vastidão do coração do ser humano só pode corresponder a totalidade das coisas — a liberdade plena, a verdade, a justiça e o bem. É por isso que, em tempos conturbados como os que hoje vivemos, para contrabalançar o desinteresse, o alheamento, o excesso da informação, o vazio na curiosidade, ler poesia — neste caso, a de Sophia de Mello Breyner — contribui para caminhar, alargar o olhar, serenar o coração e dar amplitude a uma razão tantas vezes presa pelas barreiras do mundo.
No seio de um poema subsiste um desejo de perfeição que detém a nossa incessante procura e uma tentativa humana de responder ao mistério de se ser Homem.
Se lermos mais a obra de Sophia de Mello Breyner, vamos com certeza aprender a olhar melhor, não como quem vê com nitidez o que parecia desfocado, mas como quem vê com nitidez através do coração. Por consequência, gastaremos menos dinheiro em livros que professam listas intermináveis cuja sua principal função é anunciar uma felicidade que nunca vem.