“Sorry We Missed You”, de Ken Loach: a uberização do trabalho e os dilemas dos cuidados informais
Ken Loach não pode deixar de fazer cinema e cumprir a promessa feita há três anos depois de ganhar a Palma de Ouro por “Eu, Daniel Blake”. Aos 82 anos continua a fazer um cinema social imprescindível. Talvez porque continua a tocar-nos de uma forma profunda com as histórias do dia-a-dia das classes que precisam de trabalho para viver.
Uma vez mais com uma narrativa desenvolvida em parceria com Paul Laverty, Loach viaja até Newscastle para se focar nos dilemas de uma família profundamente afectada pelas condições de trabalho. “Sorry We Missed You” afectou-nos também e é até agora o filme mais tocante da Selecção Oficial em competição para a Palma de Ouro em Cannes.
Se calhar até conhecemos alguém como Ricky (Kris Hitchen, com o seu primeiro trabalho relevante em cinema), um motorista por conta própria numa empresa de entregas rápidas ou Abby (a não actriz Debbie Honeywood), uma cuidadora informal que vende o carro e passa a andar de transportes públicos para que o marido possa comprar a sua carrinha e fazer os seus turnos de 12-14 horas seis dias por semana, como uma solução credível para resolver os seus problemas financeiros. A equação familiar completa-se com os filhos; o primeiro a atravessar os dilemas da adolescência e o absentismo escolar e o segundo uma menina que procura contribuir como pode para manter coeso o agregado familiar.
Depois do desemprego crónico de “Eu, Daniel Blake,” Loach atira-se a esta forma moderna de trabalho “escravo”, e alternativa ao desemprego – há quem lhe chame “uberização do trabalho”. Só que transporta o realismo social, quase documental, próximo de um John Grierson, um dos paladinos do documentarismo no Reino Unido, de certa forma até “pai” da expressão “documentário”, usada pela primeira vez na crítica que ele fez ao filme “Nanook, o Esquimó”, de Ribert Flaherty, de 1927.
De certa forma, este magnífico “Sorry We Missed You” (a ironia do título reporta ao panfleto deixado nas caixas do correio quando não foi possível fazer a entrega da encomenda) parece uma variante actualizada do clássico “Night Mail”, de 1936, um dos títulos mais celebrados de Grierson, precisamente para descrever como era feita a entrega do correio nocturno via comboio.
Neste seu percurso do realismo social britânico, embora com um tom globalizante, Loach torna-se exímio ao abordar de forma frontal questões fracturantes da sociedade, sobretudo quando confere às personagens um profundo humanismo que não as deixa cair num poço sem fundo, mesmo quando estão à beira do desespero. Por vezes, basta um momento de paz bucólica, como sucede quando o pai aceita a ajuda da filha para fazer entregas e tem com ela um momento de paz ao fim do dia. Ou como quando Abby desespera por ter de interromper o dia de folga para assistir uma paciente sozinha que necessita de cuidados de limpeza, mas que depois sente de alguma forma uma recompensa acfetiva. É tão bonito presenciar esses momentos quando são traduzidos pelo melhor cinema.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt