Spike Lee pisca o olho à Palma de Ouro com ‘BlackKlansman’
Ao 7.º dia do Festival de Cannes, Deus descansou à sombra do documentário do Wenders sobre o Papa Francisco e foi então que Spike Lee atacou com o magnífico BlackKlansman e na passada piscou o olho à Palma de Ouro. Para trás ficavaram já os aplausos incontidos na sessão de imprensa que não esperaram pelos créditos finais. Já que no serão da gala da noite anterior, foi uma ovação de mais de 10 minutos.
Em 1989, há quase 30 anos, portanto, Spike ficou fulo por ter perdido a Palma de Ouro por Do The Right Thing!, curiosamente com grande parte da mesma equipa que participou neste novo filme. E quem era o Presidente do júri na altura? Recorda-nos o The Hollywood Reporter: Wim Wenders e cuja opção foi para Sexo, Mentiras e Vídeo. Não é lindo? Pois é, o filme pré-Rodney King e os riots de LA em 92. A História é mesmo macaca. Este ano, é Wenders que pede inspiração ao senhor que o inspire a fazer um novo hit, quando Spike volta a Cannes com as mesmas pulseiras e arrancou 10 minutos de aplausos na sessão de gala. Ironias.
E o que temos então? Temos Spike Lee de braço dado com Jordan Peele, percebe-se aqui o dedinho dele, a surfar na onda ‘black is beautiful’. E é aqui também que temos a outra enorme surpresa deste BKKK, ou seja, Mr. John David Johnson, o filhote de Denzel, que em boa hora abandonou o futebol (americano) para se dedicar à arte em que o pai é um grande senhor. Se a coisa pegar, o que deve ser inevitável, esperamos vê-lo na short list para as nomeações de uma nova concorrência negra à estatueta dourada.
Convém explicar que grande parte do triunfo do filme passa pelo humor que o cineasta colocou para falar de coisas bem sérias (e aqui sente-se de novo a proximidade de Peele), ainda que inspirado na história verídica de um negro que, nos anos 70, se infiltra do KKK e chega à mais alta patente da organização local.
O filme tem inúmeros pontos de interesse, como o discurso inflamado dos Black Panthers, o jogo entre John David Washington, capaz de imitar um Kings English e o jive negro, e o ‘judeu’ Adam Driver, que se converte quase em nazi, para ‘enrolar’ o klansman local David Duke (Topher Grace). Pelo meio, há ainda pesadas referências cinéfilas, como a cena de E Tudo o Vento Levou com que o filme abre e, mais adiante, o assinalar do racismo de David Wark Griffith, no majestoso O Nascimento de uma Nação. Ou até a invocar em jeito de brincadeira alguns títulos assumidamente blaxploitation, como Foxy Brown, Shaft, Super Fly, entre outros.
Isto porque no final, o humor ligeiro que já tinha espetado várias alfinetadas a Trump, e onde se ouve o Klansman a argumentar que deseje America great again, cede entretanto espaço a uma denúncia de uma inesperada carga emotiva, como há muito não víamos num filme. E que inclui potentes imagens da actualidade, como que a relembrar que ainda acontecem cenários como o de Charlottesville.
Desde Do The Right Thing, Spike haveria de voltar por diversas vezes a Cannes, com She’s Gotta Have It, Jungle Fever, ambos em competição, ainda Girl 6, fora de competição, e ainda Summer of Sam, na Quinzena, também um dos filmes mais fortes deste grupo.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt