“Stars at Noon”, de Claire Denis: a indignação foi barrada
Este artigo pode conter spoilers.
Daniel Ortega, nascido em 1945, é um político revolucionário nicaraguano. Nascido no município de La Libertad, tornou-se um ícone anti-imperialista nas décadas de 70 e 80, ao liderar a luta contra o regime de Anastasio “Tachito” Somoza, a última cabeça da Dinastia Somoza, a família que governou a Nicarágua desde 1937 até 1979, ano da revolução.
Hasteando a bandeira socialista da reforma agrária e da redistribuição de riqueza, Ortega assumiu posse no mesmo ano, onde se manteve até 1990. Chegando a 8 de Novembro de 2006, voltou a vencer as eleições presidenciais, permanecendo até hoje Presidente da Nicarágua. Em inícios de 2023, conforme noticia o The Guardian, Ortega é um dos principais rostos do totalitarismo da América Central, conhecido por aprisionar centenas de cidadãos, escritores, jornalistas e políticos que profiram qualquer oposição ao regime instalado. Considerados “traidores da pátria-mãe”, são-lhes retiradas a nacionalidade e a documentação.
Semelhante ao que aconteceu na Venezuela de Nicolás Maduro e no Brasil de Jair Bolsonaro, a pandemia de Covid-19 não só veio desnudar a fragilidade das medidas populistas de Daniel Ortega, nomeadamente nos campos da saúde e da segurança nacional, como exacerbou a pobreza pré-existente.
Segundo Juan Pappier, diretor da organização não-governamental Human Rights Watch, com atividade nas Américas, o país está perto de se tornar “um equivalente à Coreia do Norte no hemisfério ocidental”.
Conduzido pela mínima curiosidade e uma breve pesquisa nos diversos meios de comunicação, é muito fácil para o cidadão comum deste ocidente, alguns dirão, civilizado ser consumido por um sentimento repetitivo de injustiça e revolta, perante atualizações acerca de estados ditatoriais que têm pela Declaração Universal dos Direitos Humanos apreço semelhante ao que o gato tem pelo rato.
Por sua vez, que remédio, o escrutínio continua a ser o principal combustível duma grande fação “ativista” do cinema, bandeira de centenas de artistas que hasteiam tumultos pessoais ou coletivos e dão voz a quem fora privado da sua. Proclamando por sussurros o livro “The Stars at Noon”, publicado em 1986, foi este o plácito que preencheu o último trabalho da francesa Claire Denis, cineasta que conquistou o Grande Prémio do Festival de Cannes, em 2022. Contudo, o escrutínio com que se alentou o material-fonte, da autoria do jornalista americano Denis Johnson, derreteu da adaptação cinematográfica. Com isto dizer que a derrota crucial de “Stars at Noon”, rodado no Panamá no fim de 2021, é levantar uma onda de indignação consideravelmente menor do que a suscitada pela leitura de uma série de artigos jornalísticos relativos ao estado da nação da Nicarágua atual.
Como é costume no portefólio de Denis, priorizou-se o ponto de vista da personagem principal, uma jornalista americana interpretada por Margaret Qualley, imbuída por desenlaçar segredos e tecer observações caladas. Mascarada e debaixo de um clima húmido e abrasador, ao som de moscas e da telefonia machucada do estabelecimento mais próximo, a protagonista passeia por um país refém da desigualdade de classes e duma parca estrutura no combate ao SARS-CoV-2 — o romance de Johnson decorre, originalmente, em 1984, período em que já vigoravam as leis sandinistas de Daniel Ortega e que os Estados Unidos começavam a exercer influência diplomática e económica. Por via de trocos contados, favores sexuais e correspondências distantes com o patronato, esta torna-se vítima da própria curiosidade, a partir do momento em que se envolve com um misterioso e atraente empresário inglês, interpretado por Joe Alwyn.
Donde veio e o que veio esta jornalista cobrir na Nicarágua? Com quem se terá metido este businessman? Em que estágio sanitário e político se encontra o país? Sobre estes três pontos, por sinal, fundamentais, é-nos oferecida uma contextualização algo desordenada e magra. Além de genéricas linhas de diálogos que mencionam os mercados do trigo e do petróleo e a agenda hipócrita dos norte-americanos, não é disposta a informação necessária ao público. Para piorar, o filme caracteriza-se amiúde por um ritmo maçador.
Diga-se de sua justiça: o derradeiro objetivo de “Stars at Noon” é contar uma história de amor, sobre estas duas almas penadas que se conhecem “nas dimensões exatas do Inferno” e cedo esbarram contra polícias, militares, políticos, gerentes de motéis e taxistas. Contada a três vozes — Denis colaborou com a conterrânea Léa Mysius e o americano Andrew Litvack —, a relação é um escape do exterior turbulento, ocupado por jipes tremedouros e poeiras esvoaçando pelo alcatrão. Fugidias a penantes ou desassossegadas num bar deserto, as personagens partilham um desvio profundo de segurança e intimidade.
Voltando a filmar o corpo humano como ninguém, em momentos de silêncio ou de fulgurante sexualidade, Claire Denis contou com a direção de fotografia de Éric Gautier, que conjuga humores crus e veludosos, e pela música original do grupo de rock alternativo inglês Tindersticks. E, claro, pela química sucinta e atrevida da dupla de atores. Conhecido pelo drama de guerra “Billy Lynn’s Long Halftime Walk” (2016), de Ang Lee, Joe Alwyn preserva uma estatura magnânima, ora envolta de mistério, ora desfeita por reviravoltas. Por outro lado, Margaret Qualley, lançada por “Once Upon a Time in Hollywood” (2019), de Quentin Tarantino, e pela minissérie “Maid” (2021), demonstra um talento desbravado e amplo, além de um enorme à-vontade com saltitar entre inglês e castelhano. Certamente, uma atriz a ter em conta no cinema desta década.
Desta feita, reitere-se, as personagens oscilam entre duas sub-tramas, uma mais trabalhada que a outra. A primeira sobre um romance com expectáveis entraves e desconfianças. A segunda sobre um país pejado de violações de liberdades individuais e de imprensa, onde jornalistas, opositores e rivais económicos são ameaçados ou aprisionados. Ainda no elenco, a presença de Benny Safdie, Danny Ramirez e John C. Reily poderia exercer algum relevo, tanto para o bem como para o mal, mas os atores acabam relegados a meros veículos de exposição e cúmplices de cenas em que a realizadora parece indecisa entre elaborar ou dispensar uma tese provocadora.
Como resultado, a fundação sentimental e melódica de “Stars at Noon” predomina sobre um comentário sociopolítico que se desejava rígido e impiedoso, ao invés de superficial. A indignação, a matéria-prima da mudança, foi barrada, impedida de espreitar pelos estores que camuflam corpos abraçados e transpirados.