‘Succession’, a família em primeiro lugar
No catálogo cada vez mais rico da HBO em Portugal o que não faltam são boas opções de visionamento, em especial no capítulo das séries. Sejam mais recentes como Westworld, Chernobyl ou Euphoria ou um dos clássicos de sempre como Sopranos, Six Feet Under ou Oz, o menu é vasto e a escolha não é fácil. No entanto, entre todas essas opções, “escondem-se”autênticos tesouros que a não ser alguém com capacidade de chegar a muitas pessoas faça a devida recomendação ou a época de prémios lhe preste a devida homenagem, o risco de ficarmos sem lhe dar o devido crédito ou sequer de os passarmos a conhecer é gigante num contexto actual com tamanha oferta.
Succession é essa série que corria o risco de ser desconhecida (id est, quando comparada com alguns dos nomes já supra citados, obviamente) obrigatória… absolutamente obrigatória. Succession é, por assim dizer, uma novela requintada – e dizê-lo desta forma não tem mal nenhum. Por si só, a noção de novela leva-nos para intriga e ficção. Foi uma descontextualização perpetuada com sucessivos produtos pré-formatados onde se iam mudando apenas protagonistas, criando narrativas ocas, básicas e que partiam sempre com a mesma fórmula “de sucesso” e base de criação, que arrastou e generalizou a fraca ideia ou má conta em que temos a palavra “novela”. Ora, que todas as novelas fossem como Succession e a TVI seria a HBO portuguesa. Está melhor assim?
O que torna então Succession distinta das demais dentro do género? É, mais que qualquer outra coisa, a qualidade na narrativa, mas também a forma como somos levados pelas relações e ligações humanas. Por natureza somos curiosos, e foco dessa nossa curiosidade sempre foi também, como vivem os mais abastados que nós. A dicotomia entre rico e pobre, a tentação da pessoa “média” (uma espécie de bonus pater familias de salário médio) em ver o estilo de vida dos mais abastados, sobretudo, sempre foi impulso quase natural da nossa parte. Succession vive muito disso. Ao longo da série, que conta já com duas temporadas, seguimos uma das famílias mais poderosas dos EUA, detentora de um império multimilionário na área dos média. As possibilidades de paralelismo com famílias americanas detentoras de impérios imobiliários e hoteleiros são óbvias pelo que não as procuraremos. Neste caso, como em tantos outros da vida real, a questão debate-se sobre quem irá herdar os destinos do negócio e de gerência desse império, e é nessa luta pela sucessão que começa concretamente a verdadeira riqueza da série.
Como patriarca da família Roy temos Logan Roy, um homem conflituoso que conseguiu a sua ascensão a pulso e que o incute, de forma a dura, em todos os que o rodeiam ou se colocam no caminho das suas pretensões. Logan Roy é interpretado de forma excepcional por por Brian Cox, cuja performance já lhe valeu inclusive um Globo de Ouro já em 2020. Mas consigo seguem os seus quatro filhos, a linha sucessória óbvia. Kendall Roy (Jeremy Strong), uma das personagens mais ricas desta série e aquele que nos é mostrado como o mais que provável sucessor de Logan à frente dos destinos do império após um percalço de saúde deste último; Kieran Culkin (sim, um dos irmãos do eterno Sozinho em Casa) como Roman Roy, provavelmente o mais excêntrico (em várias vertentes) dos irmãos, por mais difícil que esse pódio seja de fazer; Shiv Roy (Sarah Snook, que poderão conhecer de Predestination), consultora política democrata (a antítese de todos os restantes elementos da família, com fortes ligações aos republicanos); e por último, aquele que aparentemente é o elemento mais distanciado da equação, mas um equilíbrio necessário às outras personagens, Connor Roy, interpretado por Alan Ruck. Fora deste “núcleo duro” há também personagens interessantíssimas como Tom Wambsgans, o noivo de Shiv, Greg, o primo afastado, ou Gerri. Talvez este seja o ponto menos forte de Succession. Sentimos que seria necessário mais tempo de ecrã a cada uma destas personagens, e mesmo ao longo da série sentimos que vão tendo uma evolução cujo acompanhamento não é feito por nós, mas compreende-se. Torna-se complicado dedicar o tempo necessário a personagens mais secundárias quando no círculo principal há tanto que se passa.
Succession debate-se com a toxicidade competitiva de uma família fechada no seu círculo de possessão e riqueza, habituada a ter o que quer. De forma selvagem e meramente egoísta, os personagens provocam mazelas psicológicas que se perpetuam em vazios existenciais que o dinheiro tenta preencher através de maquiavelismos – o primeiro episódio onde Roman Roy oferece a uma criança um milhão de dólares caso consiga um home run num jogo de família, é demonstrativo da canalhice associada – ou outros vícios. Há um efeito dominó de abuso e de tirania que emana da mais alta patente familiar e que consome todos os que o rodeiam, ao mesmo tempo em que os aproxima cada vez do intrincado núcleo. Uma espécie de buraco negro que suga tudo à sua volta e se debate com uma necessidade que se sobrepõe a tudo: todos querem o reconhecimento da figura autoritária e impossível de satisfazer como é Logan Roy.
Se em clássicos como os já referidos no primeiro parágrafo retiramos um objecto de análise concreto como a política ou a família, Succession tem no motor da sua narrativa uma mistura quase explosiva de vários temas, à medida que os expõe em géneros que seriam à partida antagónicos, contrários, como neste caso é a comédia e o drama. Succession é mais uma série no já vasto capítulo de riqueza que a HBO sempre proporcionou historicamente, e onde, neste caso, se nota o dedo do seu director executivo Adam McKay – e, já agora, Will Ferrell, também ele produtor executivo da série – e que este nos foi habituando através dos seus mais recentes The Big Short e Vice. A forma como momentos de tensão são concluídos com close-ups sobre as expressões incrédulas dos visados é já marca de água do também ele realizador e um pormenor também muitas vezes utilizado em séries de comédia como Modern Family ou Curb Your Enthusiasm.
Quanto à banda sonora, o que dizer de uma que consegue tornar momentos “normais” (sendo que o “normal” desta série está longe de ser o comummente consumido por nós) em momentos sublimes perpetuando-os na memória?
Succession chega-nos ao nervo através da podridão da classe alta que nos é demonstrada e desmontada através de contínua provação e digladio dos elementos da família Roy à poderosa e influente personagem interpretada por Brian Cox. Uma sátira ao império dos media e ao capitalismo desenfreado e abusivo. Um tratado sobre o conceito de família, das complicadas ligações e emoções que esse elo acarreta, e consequências em todo o nosso processo de crescimento contínuo interior. Um must watch.