Sweet Little Sixteen
Esqueci-me do que vim cá palrar. De momento, podia ser tudo. Mas pode ser que, entretanto, a memória seja avivada. Em pleno surto pandémico, consigo vaticinar um surto psicótico onde eu certamente me incluo. Não sei se é Alzheimer, um futuro estado de insanidade perpétuo ou – pelo menos – com capacidade de resistência considerável. Já não me lembro do que disse até aqui. Vou reler. Reli. Todavia, a prossecução do raciocínio é impossibilitada pelo facto de não ter em mente algo premeditado para escrever no parágrafo inicial. Decidi, face às circunstâncias, agrilhoar-vos ao meu infortúnio. Basicamente, a minha missão está praticamente cumprida: empatar o leitor. Consegui?
De repente e sem pretender aproveitar-me da lucidez súbita, – a qual utilizei para aplicar neste preciso momento, curiosamente – fez-se luz, essa palavra facilmente metaforizada em contextos variados. Apareci por cá com o intuito de realizar uma das missões que circula nas redes sociais relativa à escolha de álbuns com opinião sobre o desempenho do nosso bichinho musical. Não, e a pergunta é descabida. Escolhi 16 essenciais e não me limitarei a expor apenas a capa do disco. A cópia não tem nem nunca teve piada. Caso contrário, o artista Tony Carreira seria audível (note-se a minha simpatia).
Sem ordem, sem preferência, aqui só se debita Arte de caráter internacional.
Neon Bible. Se Funeral representou o prólogo de uma das tramas mais – como dizer – rítmicas e dadas ao movimento do corpo, a “Bíblia de Néon” constitui a confirmação desse mesmo facto. A escuta atenta da rodela convida-nos a sair do nosso corpo, corpo esse que muitas vezes achamos ser uma jaula e mergulhar não num oceano de barulho, mas num mar de libertação pessoal. Indiferente ninguém fica. A percussão marca o passo e inicia os movimentos velozes de um carro carecido de movimento constante. A voz de Win Butler é simultaneamente intervenção pura um cantar dócil. No fundo, um sermão que gostamos de ouvir. Os Arcade Fire são isso mesmo.
London Calling. Já tive oportunidade de dizê-lo, mas os The Clash corresponderam a um Brexit musical sem qualquer tipo de inconveniente. A voz da Inglaterra proletária (Clampdown) misturada com uma postura anarquista. O punk rock mais meigo a que podem assistir pela capacidade lírica de Strummer e do antagonismo representado face à forma de vida dos “dois acordes” e “do it yourself”. Do reggae ao jazz, do ska a soul, com passagens pelo rockabilly e pelo funk. Quase que se torna percetível a existência de uma balada a lembrar um amor antigo (Train In Vain), erguuem-se mensagens políticas e carregadas de sarcasmo dirigidas à Coroa (Spanish Bombs). “Death or Glory” representam-nos na perfeição: o sentimento é extremado e só pode ser dessa forma quando nos referimos a Strummer e compª.
Heroes. David Bowie é imutável dentro da mutabilidade. Realizou e produziu para todos os gostos, moldou-se, transformou-se, camuflou-se. O camaleão apresenta uma fação enorme de leão. Assim como “Joe the Lion”. Adaptou-se às vulnerabilidades da música e cresceu com ela. Nenhum álbum é igual ao seu antecessor ou sucessor. E este, particularmente, tem muito de Alemanha e parecenças inolvidáveis com os Kraftwerk. “V-2 Scheneider” é eletrónica sem adultério e em “Neukoln” os resquícios da mesma verificam-se de modo experimental. Ideia de Brian Eno (Talking Heads)!?
Ocean Rain. A obra prima dos Echo & The Bunnymen. Espinhosa a escolha entre este e Heaven Up Here, mas, em caso de dúvida, a balança tende sempre o lado favorável, menos abismal e com a menor quantidade de breu no horizonte. A genialidade, porém, não se discute. O som proveniente da banda esbarra na barreira do cantável à primeira vista, a grande maioria das melodias líricas não são instrumento ao qual decifremos todas as suas particularidades, à exceção de Killing Moon e Seven Seas. Ian McCulloch anuncia as suas profecias, através da sensibilidade (Crystal Days), da impenetrabilidade (My Kingdom), da ausência de histeria vocal (Angels and Devils) e do choro entrecortado e sofrido (Ocean Rain). Uma das melhores companhias é a solidão dos Echo
16 Lovers Lane. A pessoalização atinge o nível máximo. Se preferirem, chamem-lhe de guilty pleasure. A locomotiva da demanda de um amor sem a menor gota de romantismo bacoco (Love Goes On!). A melodia sincera e frágil que culmina no sentimento de inquietação sem o chamamento do alarido (Quiet Heart). A sobrevalorização do estado de condensação da alma e no posterior evitamento de um ruir anunciado (Clouds). O calcorrear, ainda que à deriva, pelas ruas e ruelas de uma alma gémea não mencionada (Streets of Your Town) de forma determinada. Mais do que cangurus, a Austrália deu à luz os Go-Betweens.
Closer. O exemplo evidente e flagrante da opção pela noite. Os Joy Division alinharam os seus padrões sob os controlos da esquizofrenia. O lirismo, tanto vociferado como quase segredado, apresenta elevados de mágoa e transtorno. A melodia, em toda a sua composição e produção, puxa dos cordelinhos do sofrimento penoso, facto agudizado em Isolation e Athrocity Exhibition. Ian Curtis dança e absorve a epilepsia e, quando escutado, certifica-se de que a mensagem não se altera, fundindo a alma e o coração (Heart and Soul). O ouvinte, notificado por tamanha tristeza, surge boquiaberto e com uma angústia propositada sobre o gira-discos. A beleza da escuridão durou muito pouco tempo…
Movement. Indicador da substância do álbum. Movimento. New-wave não abrutalhada. Sintetizadores ao alto, eis New Order! Mas ainda soa a Joy Division (Senses). A dissidência foi precipitada e as desculpas são válidas. A morte de Ian Curtis conduziu a um movimento distinto, uma nova ordem. A equipa ficou reduzida e ganhou uma presença feminina. A escuridão metamorfoseia-se em claridade gradual. O lado negativo e obscuro dissipa-se ao sabor de Chosen Time. Truth afirma-se como uma missiva carregada de objetividade, apesar de estranha e aparentemente indecifrável. Dreams Never End traduz-se na esperança mais vácua e no grito mais corajoso. A música, a partir daqui, seguiu as ordens de quem as deu.
So Tonight That I Might See. Diz-se que a música “boa”, antes de se entranhar, estranha-se. Com Mazzy Star, não foi assim que aconteceu. Hope Sandoval cai de para-quedas no mundo do comum mortal e emana toda a ternura, toda a doçura, toda a quietude quase palpável. A melodia, independentemente da sua aceleração, é interpretada num tom transmissor da maior das tranquilidades. Sim, até em riffs quase a aflorar o psicadélico. De Bells Rng a Fade Into You, de So Toninght That I Might See a Blue Light. Sugestão: após um dia azafamado de trabalho, coloque a rodela no prato e deixe fluir…
Boxer. Matt Berninger e a sua cúpula atingiram o clímax com o álbum (pelo menos, para mim). O trabalho desenvolvido é “Brainy”. Sempre que o escuto argutamente, como se fosse a primeira vez, cresce em mim a sensação de que a melodia anda sempre um passo à frente da letra (Fake Empire). Faixa a faixa, pode observar-se um Slow Show de entrega total ao que é cantado. Inclui uma “Apartment Story”, uma relação afetuosa dos tempos modernos e numa confluência de espírito entre os dois sexos, com álcool e música à mistura. Finda a produção, tudo foi deixado no ar e em suspenso “Ada”.
Doolittle. O frenesim acabou de atracar no cais do indie rock. Perante tal produção, não sejam “Debaser”. A histeria é, toda ela, justificada. Um grito de revolta, uma rebelião liderada por Black Francis e com um cheirinho a Porto Rico. O condimento audaz e A Wave of Mutilation do rock massificado e neorromântico. A referência, o esquartejar da Bíblia e a presença da ideia de Inferno (I Bleed). Num tom frio e irónico, conexão com alguém que desejamos toda vida e que, por alguma razão, não encontramos mais cedo (Hey). A redução do Homem ao primata e as devidas conclusões que daí se retiram, com a inclusão de Deus. (Monkey Gone To Heaven). O término verifica-se com o arrancar do espírito demoníaco, entre o pecado e o sagrado (Gouge Away).
Screamadelica. De baterista dos Jesus and Mary Chain, a vocalista dos Primal Scream. Bobby Guillespie foi pau para duas obras diferentes. Cresci a ouvir este álbum. Um rock esfumado ao máximo, uma espécie de gospel de fundo e uma balada de autodestruição (Damaged). A dança, a batida ritmada dos pés até à exaustão (Don´t Fight It, Feel It). O estado de transe mental sem malefícios (Higher Than The Sun). O experimentalismo com conhecimento de causa (Inner Flight). Os dez minutos de um êxtase emocional, vibrado e sentido ao pormenor (Come Together). O som quente, genuíno e diáfano característico de uma tarde ou noite na companhia de amigos (Loaded). Ainda há quem ache a imagem da capa um ovo estrelado quando ele se encontra bem cozido…
Different Class. 1995, Inglaterra. Provavelmente, o início de uma guerra declarada entre Blur e Oasis pelo trono da British Pop. E os Pulp, sem querer perfurar a ausência de fundamento da peleja (porque os Blur são melhores!), situam-se do outro lado da margem do rio. Jarvis Cocker, através deste álbum, autoproclamou-se o rei da gente comum (Common People). Doutorado em relatos de situações inóspitas (Underwear) e espião nas horas vagas (I Spy), provoca no público a sensação de que algo mudou ou está para mudar (Something Changed). A dicotomia rapaz/rapariga, o humor seco e instigador de uma picardia e o não-rebaixamento perante o sexo – aparentemente – mais frágil. Sheffield não é só fumo e fábricas.
Out Of Time. A catapulta para o estrelato mais que merecido. Se Document foi uma tentativa pálida de sair do mundo independente, GRREN demonstrou a capacidade de erigir uma mensagem política através de World Leader Pretend ou Orange Crush. Mas é em 1991 que o “estouro” se dá. Never Wild Heaven é capaz de nos dar a imagem dos Beach Boys de Pet Sounds, por exemplo. Losing My Religion é a pop no seu estado mais bruto, prontamente apta a petrificar quem a ouve. Belong reproduz o mais belo grito do Ipiranga e tem, nos seus subterfúgios, gotas de indie rock. Shiny Happy People ordena que infelicidade cesse e diz que não há tempo para a mesma. Half a World Away é a metáfora para a solidão e o pensamento de que a vida é uma batalha entre o mundo e nós mesmos.
The Queen is Dead. Depois de um Meat is a Murder de fazer cair o queixo, pensou-se que melhor era impossível. Morrissey sorriu ironicamente e prendou-nos com isto. Polémica e controvérsia postas de lado, a poesia solidifica-se com a atividade da agulha. Críticas ao regime e à Coroa? O prazer pelo inconformismo? O retrato do fim que tudo assombra? As odes trágico-amorosas? O plágio aquando de uma visita ao cemitério? Os The Smiths gostavam disso tudo. Ao contemplarem uma ferida, a escolhia pendia sob estimular ardência. A boca grande e desregrada de um poeta que sonhava ser Oscar Wilde atacava constantemente. A luz que nunca se apaga também provém disso mesmo.
From The Lion’s Mouth. The Sound. A melhor banda desconhecida dos anos 80. Ou menos conhecida, se preferirem. A forma mais subtil e impoluta do dedilhar da guitarra. Sintetizadores a ajustar o ambiente de fundo. Adrian Borland é a voz incisiva e sem qualquer tipo de piedade. Apela-se ao coração (The Fire), abre-se uma brecha no silêncio ensurdecedor (Silent Air). A descrença cresce, o medo apodera-se das almas e a perda da nova geração edifica-se (New Dark Age). Irrompe um desejo de desejo de possuir e controlar as entidades que penetram a alma. (Possession). O embevecimento é espontâneo. O Som que magnetiza…
Violent Femmes. Sem eles, os tão nossos Ornatos não existiriam. Resumindo, eles foram a influência da influência dos dias de hoje. Gordon Gano lidera um dos trios mais extravagantes, mais “fora da caixa” e mais estranhamente harmoniosos da música. Apesar de os apelidarem de pós-punk/new-wave, considero-os sem estilo. A vivacidade e a euforia têm o seu nome cravado. Add It Up é a súplica de amor prático no estado mais desinibido, Please Do Not Go assume contornos de uma paixão insuperável e na prece constante, Confessions suscita a dúvida da solidão e do eterno axioma de precisarmos de algo ou de alguém para sermos alguém. Somos duplamente felizes pela existência dos Violent Femmes.
Adiante, a música portuguesa. Só não a expus na dissertação pelo facto de os caracteres serem à justa.