Talvez o pior e o melhor ao mesmo tempo

por Sara Rathenau,    29 Agosto, 2021
Talvez o pior e o melhor ao mesmo tempo
Fotografia de Annie Spratt / Unsplash

Imaginemos uma criança que está a ver o mundo e tudo o que nele existe pela primeira vez. Esta criança aprende e apreende através da observação, através da palavra e especialmente através do Outro. A criança sente tristeza, raiva, medo, alegria, nojo e surpresa. Para além disso, a criança sente vontade de construir, mas também de destruir.

Todos nós temos — à semelhança da criança — uma energia de construção e uma energia de destruição. Podemos direcionar essa energia para nós próprios, para os outros e naturalmente para as relações que temos com os outros. A famosa expressão “auto-sabotagem” não é nada mais do que direcionarmos uma espécie de energia destrutiva para o nosso Eu. Porque é que fazemos isto? Fazemo-lo da mesma forma que praticamos o “auto-cuidado”, onde aqui já poderíamos considerar que estaríamos de mãos dadas com uma espécie de energia de construção. Todos temos um lado nosso, destrutivo e construtivo. Como Hayao Miyazaki diz “Humans have both the urge to create and destroy”. Se por um lado, somos capazes de construir para nós e para o outro coisas belíssimas, alcançar grandes feitos humanos e criar lugares afectivos ricos e seguros, somos também capazes de destruirmo-nos, de destruir o outro e de criar lugares afectivos cheios de agressividade e sem amor.

Há um tipo de destruição que é retratada desde o início dos tempos em diversas áreas do saber, que está associada à mudança e que é vista como condição necessária para a criação e crescimento. Esta destruição é conhecida como Destruição Criativa ou Schumpeter’s Gale. Aqui, não falo de uma destruição criativa ou necessária para o crescimento, falo de outra, que leva exactamente ao oposto.

A linha que separa o construir do destruir é curta. É fácil ultrapassá-la e muitas vezes nem sequer nos apercebermos. Os tempos que vivemos são desafiantes e parece que a incerteza e o desconhecido encurtam-nos mais esta linha. Não só nos encurta como nos confunde. O Outro, que é (ou devia ser) percebido e apreendido como um lugar de crescimento e de amor, mas também de diferença e atrito, agora é muitas vezes visto apenas como uma ameaça, como um possível inimigo. A incerteza e a mudança que todos vivemos não só nos encurta a linha como nos coloca de certa forma nos olhos da criança que vê o mundo pela primeira vez.

O Outro não deve ser percebido e apreendido como um inimigo. Tal como o Miguel Torga dizia “A vida afectiva é a única que vale a pena. A outra apenas serve para organizar na consciência o processo da inutilidade de tudo”. Para que a vida afectiva exista é sempre preciso um Outro. É necessário que estejamos atentos e consigamos perceber que o mundo afectivo requer cuidado e atenção. Vivemos tempos delicados em que todos nós estamos novamente a aprender e apreender quase como se fosse a primeira vez e para isso — tal como a criança — precisamos de um Outro, diferente, mas que não é apreendido como inimigo. Devemos olhar para o nosso lado destrutivo, dar-lhe um lugar, mas meter-lhe rédeas não vá ele tomar conta do nosso lado humano e também da nossa vida.


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