“The French Dispatch”, de Wes Anderson: uma antologia de pequenas verdades
Como seria um artigo de uma revista contado em cinema? O novo filme de Wes Anderson, The French Dispatch of the Liberty, Kansas Evening Sun, ou, como é conhecido na sua forma abreviada The French Dispatch (Crónicas de França), é uma possível resposta a esta questão.
É-nos apresentada a revista ficcional fundada em 1925 pelo jovem Arthur Howitzer Jr. (interpretado por Bill Murray), estabelecida na cidade francesa também inventada Ennui Sur-Blasé. Mais tarde, em 1975, observamos todos os colaboradores da revista no gabinete de Howitzer, após a sua morte súbita. Todos juntos tentam dar resposta ao seu testamento: o falecido chefe exige uma última edição da French Dispatch, com o seu obituário e três estórias antigas. E assim começa (e acabará) o filme.
O que se segue são quatro pequenas estórias; intemporais, pois há apenas pistas do seu espaço no tempo, mas nenhumas certezas; publicadas na French Dispatch: seguimos o escritor de viagens Herbsaint Sazerac (Owen Wilson) numa visita de bicicleta a Ennui Sur-Blasé, apresentando os vários locais e os seus habitantes e mostrando as diferenças na modernização da cidade que tenta manter a sua essência (e aqui reparamos como a tradução de “ennui sur blasé” pode significar “tédio sobre tédio”); seguimos a história do pintor assassino Moses Rosenthaler (Benicio del Toro), descoberto pelo negociante de arte Julien Cadazio (Adrien Brody), e que faz da sua guarda prisional Simone (Léa Seydoux) a sua musa; seguimos a revolução, disputada em jogos de xadrez, do corpo estudantil, liderado por Zeffirelli (Timothée Chalamet), enquanto a escritora Lucinda Krementz (Frances McDormand) tenta manter a sua imparcialidade jornalística; e finalmente seguimos o escritor Roebuck Wright (Jeffrey Wright) num jantar na casa do Comissário (Mathieu Amalric), preparado pelo seu chefe de cozinha Nescaffier (Stephen Park), que acaba por ser o cenário do rapto do filho do Comissário, Gigi (Winston Ait Hellal). Ao iniciar cada uma destas estórias surgem separadores, indicando a secção de revista a que cada uma delas pertence: política mundial, arte, moda, cozinha refinada…
Wes Anderson filma assim uma revista, expressando o seu objetivo cumprido de juntar uma antologia, a revista The New Yorker e o cinema francês na mesma equação. Num filme tipicamente “Wes Anderson” na estética, com estórias diversas para todos os gostos, The French Dispatch pode, para alguns, cometer uma pequena auto-sabotagem: é praticamente impossível perceber na sua totalidade todos os pormenores na primeira visualização, sendo necessário no mínimo duas, mas talvez idealmente três, para sentirmos que temos um conhecimento aprofundado do que se está a passar. É composto por tantos detalhes: mudança de cor para preto-e-branco, divisão do ecrã, legendas para traduzir algumas passagens em francês, animações, analepses… No entanto, a cada visualização, torna-se num filme que tem sempre algo mais para dar, eternamente diferente, consoante o aspeto em que nos decidimos concentrar.
O cerne das estórias apresentadas corresponde ao que Wes Anderson já nos acostumou, assumindo essa característica de contador de histórias nos seus filmes, através de narradores que, neste caso, são sempre escritores. Cada parte funcionaria de forma singular, pois cada narrador é uma voz isolada, recorrendo a diferentes técnicas para colocar em imagens o seu texto: podemos assistir a uma palestra dada por J.K.L. Berensen (Tilda Swinton) sobre como ficou a conhecer Moses, o pintor; lemos os diários de Lucinda durante a revolução estudantil, e deliciamo-nos a ouvir Roebuck Wright a contar palavra por palavra o seu artigo, devido à sua memória tipográfica, num programa de televisão.
Em todas as estórias sentimos a familiaridade de reconhecer sentimentos tão difíceis de descrever: a inspiração artística, o amor (o correspondido e o não correspondido), a invencibilidade de ser adolescente e a inocência juvenil, a dificuldade que é, por vezes, assumir e ouvir um “desculpa”, o que significa não estar em casa, num país familiar, a identificação de um sabor novo e a impossibilidade de voltar a prová-lo.
Mas, embora facilmente identificáveis (pois viver será, algures na vida, ter sentido todas ou quase todas as emoções que o filme descreve), todos esses sentimentos correspondem a uma camada de ficção. Wes Anderson vai mais além com inúmeras referências que correspondem ao mundo real: desde a The New Yorker até ao Maio de ’68 (mantendo o mesmo espoletar de acontecimentos), passando por diversos escritores reconhecíveis como Mavis Gallant, Joseph Mitchell, James Baldwin, entre outros.
Onde Wes Anderson acerta é na mistura entre a ficção e essa verdade. Na última estória, o chefe de cozinha Nescaffier, um imigrante, é o grande salvador de Gigi, enganando os raptores fazendo-os comer rabanetes envenenados. Numa revelação final ao escritor Roebuck Wright, que decide mais tarde retirar todo este diálogo do seu artigo, Nescaffier revela o sabor novo que experienciou descrevendo-o como “à procura de algo que está a faltar, sentindo falta de algo que deixámos para trás”. Roebuck Wright, também imigrante, responde “talvez, com sorte, possamos encontrar o que nos iludiu nos sítios a que chamámos casa”.