‘The Killing of a Sacred Deer’: pelas mãos de quem pode dar ou tirar a vida
Quando aquele momento de escuridão inquietante volta, assimilamos então a legítima entrada num dos filmes de Yorgos Lanthimos. Introduzimo-nos num certo tipo de disposição e atmosfera, que já foi criado pelo realizador através de filmes, como na sátira “Dogtooth” ou na distopia vivida em “The Lobster”.
O realizador grego entrega ao espectador, não a perfeição mas sim a inquietude, como ponto de foco. Conforme o atravessamos com o crescente da narrativa, tudo se transforma numa crueldade verdadeira, num mundo real mas ao mesmo tempo artificial. Somos envolvidos nesta teatralidade da vida, que é sentida pelas personagens que abraçam uma tragédia, do silêncio ensurdecedor ao completo grito – do silêncio, da incapacidade ou da impotência.
‘The Killing of a Sacred Deer’ narra a estranha estória de uma família semi-perfeita em plena harmonia, até ao momento que são invadidos pela mente perturbada de Martin (Barry Keoghan). Martin é um adolescente, que perdeu o pai numa cirurgia feita pelo Dr. Stephen Murphy (Colin Farrel). Com todos os remorsos possíveis de uma suspeita negligência, Murphy apresenta-o à família, à mulher Anna (Nicole Kidman), à filha adolescente Kim e ao pequeno Bob. O que ninguém previu são os cenários perturbadores de são vividos a partir deste preciso momento e as escolhas bizarras que Murphy tem que fazer de forma a se ajudar a ele e à família.
Yorgos Lanthimos é um dos realizadores mais criativos que se sobressai no cinema independente europeu, traçando um caminho exemplar que reside na ideia invulgar de fazer do cinema uma experiência complexa e filosófica, onde o sentir ocupa o mesmo lugar que o pensar. O impressionante no cinema de Lanthimos é a sua capacidade de criar universos fantasiosos quase reais. O realizador grego consegue colocar o espectador crente na sua fantasia, como se se tratasse de uma realidade possível e não de uma sociedade inventada, criada com um propósito de provocar algo a quem é convidado a entrar.
O filme começa com um grande plano do coração humano e assim é-nos introduzida a ideia da importância de um coração, seja fisicamente ou metaforicamente; nada nos é mais íntimo, a vida e a morte, do sentir e do ser. Juntamente com esta imagem ouvimos Stabat Mater de Franz Schubert, que se torna uma espécie de algo impreterível, importante mas num tom meio fúnebre. A câmara afasta-se o coração fica em segundo plano, e as mãos entram como primeiro plano, outro elemento de uma das temáticas do filmes. Ao longo do filme segue-se uma pequena obsessão pelas mãos do médico, pelas mãos que podem dar vida ou tirá-la.
E essa é pode ser outra questão que se pode colocar: quem opera quem? As mãos ao coração, ou o coração às mãos, falando de uma forma teorética. Um filme e até um cineasta pode tentar reparar mas também pode tentar afectar o espectador, tal como um médico pode afectar ou reparar um coração de um paciente.
Neste momento perguntamo-nos: o que há mais de íntimo que o coração? Lanthimos deixa-nos repletos de pensamentos sobre este drama, este conto de corações frágeis. Ficamos com a ideia humana de Lanthimos olhar o mundo, e os sacrifícios que temos que fazer pelo que acreditamos.
Toda esta dinâmica de uma narrativa invulgar, deixa como residente o desconforto, a frontalidade e a dúvida de sermos nós também vítimas deste enredo melodramático. Lanthimos e Efthymis Filippou construíram um mundo de diálogos satíricos, muito bem desenhados que assentam em cada personagem como a perfeita pele para tentarem ser quem não são, e ser quem não querem. Apresentam-nos esta normalidade nos diálogos, nada mais quotidiano, mas que vai acentuar um determinado ritmo ao filme, e lhe transfere também a sensação de constante agonia e risco.
Mas o filme não são só é feito de diálogos, a banda sonora acrescenta de forma majestosa, toda a ironia ao filme, quando tudo parece ser tão sério, essa tensão é nos desviada pelos coros, pelas flautas, pelos violinos desafinados, pelo som de um piano fragmentado. Tudo nos indica uma desconstrução da realidade e um acrescento enorme de desorganização ao filme, tornando-o ainda mais enigmático.
Curiosamente são os actores que se unem perante o argumento e universo de Lanthimos e não o contrário. Este facto mostra não só mestria na condução dos seus actores, mas também uma enorme capacidade de criar ambientes sólidos onde a sua história e personagens se encaixam perfeitamente de forma a nos colocarem diversas questões:
E se fosse connosco? O que faríamos se estivéssemos naquela situação? O filme não procura bem uma reposta, embora nos apresente uma solução para aqueles personagens.
Apesar de todas as questões que nos surgem ao longo do filme é com corte cirúrgico que o realizador rompe com qualquer tipo de proximidade que o espectador possa ter com qualquer uma das personagens. Predominam os planos gerais, com muito espaço, vemos as personagens ao longe, distantes, como se fossem um segmento daquilo que poderíamos ver se estivéssemos mais perto. A câmara movimenta-se a medo, suavemente mas hesitante. A maioria das vezes movem-se pelos corredores kubrickianos, muitos corredores de hospitais como se deslizassem e ninguém as visse, meio bizarras meio fantasmagóricas. As linhas simétricas também dão a sensação de distanciamento entre as personagens e o espectador, separando-os em linhas distintas. Toda esta estética determinam uma realização fria, sóbria e absorvente, não esquecendo cinematografia a um excelente nível (não fosse o trabalho de Thimios Bakatakis) acrescentando pormenor ao filme, e contando também ela uma narrativa.
Mesmo que não seja o melhor filme do realizador, ‘The Killing of a Sacred Deer’, é um trabalho repleto de mérito, com todas as características criativas do seu cinema. Cria uma realidade social díspar, personagens extremas e que desafiam sempre a lógica das acções que seriam expectáveis.
Sentimos que temos que desafiar a lógica para conseguirmos absorver o filme e os seus confrontos. É isso que Lanthimos faz soberbamente, assim como Kubrick e Orson Welles faziam nos seus filmes. Percebemos que ao longo do filme o fardo também passa para além do ecrã, chega a este lado, e no final de tudo, também ficamos nas mãos do médico. É um filme de realidade frágil, que nos expõe devido à sua vertente familiar e íntima onde repousa e onde nos deixa num exercício de consideração.
Artigo escrito por Sara Camilo e João Miguel Fernandes