The Legendary Tigerman: o tigre que ruge rock ‘n’ roll e encontra poesia nas imagens

por Carolina Franco,    23 Abril, 2017
The Legendary Tigerman: o tigre que ruge rock ‘n’ roll e encontra poesia nas imagens
The Legendary Tigerman / Fotografia de Sara Brandão – CCA
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O dia era de festa e já tinham passado pelos dois palcos do Party Sleep Repeat algumas das bandas que deram o seu contributo para a 5ª edição do pequeno festival, que se assume como sendo uma celebração da amizade, em São João da Madeira. Segundo Tiago Valente dos Santos, presidente e fundador da Associação Cultural Luís Lima, os Wraygunn eram uma das bandas favoritas do amigo que todos os anos é homenageado com o PSR, e a ideia de trazer o Paulo Furtado, ainda que enquanto Legendary Tigerman, à Oliva Creative Factory surgiu de forma natural.

Apenas dois concertos antes de o Tigerman entrar em palco para encher a Sala dos Fornos de Rock n’ Roll, conversamos com o Paulo Furtado. O cinema, o valor das imagens e o seu papel enquanto artista foram alguns dos temas que surgiram numa conversa quase informal, com uma serenidade e certeza de alguém que conhece o seu próprio ADN e sabe onde quer chegar.

O PSR tem um conceito diferente daquele que estamos habituados a ver nos outros festivais. Quando aceitas ir tocar a algum local, sentes que tens de te identificar com o conceito desse festival?

Eu tenho que pelo menos não me “desidentificar” com o conceito do festival. Para te ser honesto, obviamente que quando aparece um concerto, a não ser que haja uma razão muito estranha, é porque as pessoas gostam de ti, da tua música, e há uma identificação natural com o que tu fazes. E portanto, a partir daí as coisas correm bem. Mas sim, às vezes há sítios onde tu não queres ir porque não te identificas com os valores ou com as identificações. Por exemplo, eu não toco para partidos políticos à direita. Por isso sim, tenho que me identificar com o conceito.

E já tinhas vindo cá a São João da Madeira, ou é a primeira vez?

Eu acho que é a primeira vez que toco em São João da Madeira.

É notório que o gosto por viajar te está no ADN. Levas contigo um pouco de cada sítio que visitas?

Eu espero que sim. Às vezes não passo tempo suficiente nos sítios para que possa levar assim tantas coisas, mas por exemplo daqui levo este ambiente incrível. O modo como isto foi reaproveitado, como isso está a ser neste momento gerido, é incrível. É super fixe perceber que aqui há cultura e há coisas a acontecer, e que há residências (artísticas) e que há um espaço de criação. Não há melhor forma de se aproveitar uma fábrica abandonada do que isso, do que aproveitar um espaço para criar cultura.

Na tua conta do Instagram, quando vais embora de algum sítio, publicas uma fotografia da cama onde dormiste. Isso tem alguma simbologia?

Tem todas as simbologias do Mundo. Tem a ver com muitas coisas; tem a ver com o facto de haver uma certa poesia em fotografar. Quando tu fotografas ou quando tu descreves a mesma coisa muitas vezes, esse facto de tu repetires as coisas acaba por ganhar alguma poesia pela repetição. Quando andas em tournée dormes numa cama diferente todas as noites e eu comecei a analisar essas fotografias que ia tirando e a tentar perceber o que podia estar ali. Eu normalmente não faço nada às camas. Quando acordo, levanto-me e fotografo, tento não falsear a coisa. Houve um momento em que eu comecei a tentar fazer uma leitura sobre o próprio estado das camas e perceber se as noites mais agitadas, em que eu tinha um mau dormir, se refletiam em camas mais desorganizadas ou o que quer que fosse.

Acho que no fundo também é um pretexto para tu encontrares alguma linha condutora em que tu possas guiar o teu pensamento fora dos palcos e dos sítios. O quarto, quando estás em tournée, é o único sítio que é teu. Que é só teu; se tu quiseres, é só teu. E provavelmente não tens isso em mais nenhum momento quando estás em tournée, porque os outros momentos têm sempre muita gente e muita movimentação, muitas coisas a acontecer. Portanto o quarto acaba por ser, claramente, o único refúgio que tu tens mas que está sempre a mudar todas as noites, portanto também acaba por não ser bem um refúgio, é um sítio meio estranho. E eu gosto muito dessa repetição de fotografar as camas.

Nota-se que és uma pessoa muito visual, que dá importância ao valor das imagens. Qual era o teu foco quando foste para Joshua Tree para filmar “How to Become Nothing”, a tua longa metragem?

Na realidade isto começou tudo com a necessidade de pensar que devia gravar um novo disco. E, quando pensei nisso, assustou-me a ideia de compor canções do modo tradicional que eu sempre tinha feito, a falar sobre mim e sobre todas as coisas que me aconteciam ou não aconteciam, e tentei criar uma maneira de começar tudo isto ao contrário. Não sabia que ia fazer uma longa metragem com o Pedro Maia e com a Rita Lino. Sabia que queria fazer uma coisa com eles, sabia que queria criar um universo visual, queria criar uma história, queria criar um personagem e depois usar esta história e criar música dentro deste universo e dentro deste personagem; que não fosse exatamente a minha musica sobre mim, que fosse um bocadinho sobre esta personagem.

Na realidade depois as coisas evoluíram de uma maneira um bocadinho inesperada, por um lado, um bocadinho propositada, por outro, porque íamos com alguns objetivos, Íamos com o objetivo de fazer pelo menos uma curta-metragem que teria que ser válida à parte do projeto Legendary Tigerman (isso para mim era um dos pressupostos iniciais), mas também havia a ideia de se fazer uns videoclipes e de se fazer visuais para os concertos. Ao terceiro ou quarto dia tivemos uma reunião e começámos a falar , e pensámos “Não, está aqui alguma coisa muito mais séria, uma história que tem que ser continuada, e tem que ser escrita. Não vamos fazer videoclipes, não vamos fazer nada a não ser focar-nos nesta história. A primeira montagem do Pedro tinha 55 minutos e todos achámos que havia ali material para fazer uma longa-metragem. E assim do nada, mais ou menos em 12 dias, conseguimos fazer uma longa-metragem e escrever todo o material, e com a influência do deserto ainda consegui escrever muitas canções antes de dormir, entre o sono e o sonho, porque era esse o meu objetivo também. E consegui escrever canções que na realidade não tinham tanto a ver comigo, tinham a ver com as coisas que foram acontecendo, e esse era um dos meus grandes objetivos- era fazer este objeto maior do que a música, que é um filme, que vai ser depois um livro, e que vai ser muitas coisas diferentes; que não é só um disco.

Fotografia de Sara Brandão – CCA

Essa relação com o cinema não nasceu só com a longa-metragem. Tens vindo a fazer bandas sonoras para filmes, nomeadamente o “Ornamento e Crime” do Rodrigo Areias. Como é que se cria uma sintonia entre o realizador e tu, que vais criar a banda sonora?

Eu normalmente quando faço bandas sonoras vou muito atrás da visão do realizador. Não sou um daqueles compositores de bandas sonoras que quer manter uma unicidade naquilo que faz. Acredito muito mais em seguir a visão do realizador. Quando faço uma banda sonora com a Rita Redshoes ou com o Filipe Costa, estou claramente a optar por me juntar a pessoas completamente diferentes e de certa forma eu tento sempre perceber se há algum elemento de ligação, até porque obviamente não sou a pessoa mais versátil musicalmente no Mundo e tenho balizas até onde vou, para um lado e para o outro. Mas tento seguir ao máximo a visão do realizador e adaptar-me a ela. No fundo para mim isso é um prazer enorme, seja no cinema ou no teatro, seguir alguma coisa que é muito maior do que a música. A música é uma pequena parte que tem que ajudar a contar uma história, que tem que ajudar as pessoas a sentir, que tem que ajudar as pessoas a instalarem-se num determinado universo que não te pode soar a artificial, portanto há uma grande verdade que tens que tentar encontrar.

Tu serias a banda sonora da tua vida?

Se eu seria banda sonora da minha vida? Não, nunca. Teria que escolher outras pessoas.

E quem é que escolhias?

Acho que escolhia uma senhora. Elizabeth Cotten ou Memphis Minnie. Não sei porquê acho que se eu tivesse que escolher cinco pessoas para fazer a banda sonora da minha vida seriam todas mulheres. Acho que há uma sensibilidade qualquer, há uma delicadeza e uma profundidade, ao mesmo tempo natural, que as mulheres têm para fazer música que eu acho que é incrível.

Tu és a personagem principal daquilo que crias, mas qual é a personagem que esperas que o teu público interprete?

Na realidade não estou à espera. No “How to Become Nothing”, por exemplo, todas as pessoas invariavelmente fazem uma leitura que tem muito a ver com a própria experiência e nada a ver com a história que é contada. Porque a história que é contada tem abertura que chegue para que tu possas interpretar aquilo mediante a tua vida. E eu acho que isso é a coisa mais interessante na arte, na música, e no cinema, que é quando tu na realidade ultrapassas o que estás a ver no ecrã e relacionas isso com a tua vida e com as coisas que tu sentes.

E o que é que tu sentes quando tens perante ti um público que está constantemente a fotografar e a filmar com os telemóveis, durante o concerto?

Acho muito aborrecido. Mas eu espero realmente que as pessoas continuem sempre a ter aquela vontade de ver um concerto ao vivo e de se imiscuírem nele. Eu sei que às vezes isso não é possível e que aquele momento pode não ter a mesma importância para todas as pessoas, tal como pode acontecer na arte. Eu acho é que devia haver uma vontade por parte de todos de estar um bocadinho mais mergulhados nos concertos, e menos nisso de partilhar qualquer coisa para dizer “eu estive”, para que os outros saibam que tu estiveste. Para já ainda não tenho sentido muito isso nos meus concertos, e acho que as pessoas têm consciência de que não querem perder o que se está a passar, então esquecem-se dos telemóveis, o que é ótimo.

Numa era que valoriza tanto o digital, em que se ouve música maioritariamente no Spotify e quase já não se compram discos, achas que o vinil vai persistir e continuar a ser ouvido?

Não sei… espero que sim, porque gosto de vinil. Acho que os objetos têm sempre uma plasticidade, há um contacto físico com eles. Mas se as pessoas continuarem a ouvir música, por mim está tudo bem. O CD, por exemplo, para mim, é o formato mais errado do Mundo. Estou ansioso para que o CD morra de vez. Infelizmente acho que vou ter que lançar mais um CD, mas espero que no disco a seguir eu não tenha que o fazer porque odeio mesmo o formato. Não acho que seja um formato inteligente, nem com boa qualidade. Para mim, por exemplo o Spotify e o vinil não têm problema nenhum. O primeiro momento em que eu ouço uma banda é no Spotify e depois se eu gostar mesmo compro o vinil e tenho em casa. O vinil só tem uma peculiaridade (em comparação com o Spotify), que é forçar-te a teres uma ação qualquer para ouvires música. Não podes estar a ouvir um vinil em qualquer lado, ou estar a ouvir um vinil e a trabalhar, porque tens de ir lá e mudar o lado. Ainda exige alguma coisa de ti.

Por falar em Spotify, a tua música mais ouvida lá é a “These Boots are Made for Walking”, da Nancy Sinatra. Se pudesses escolher uma música da tua autoria para estar no número um, qual seria?

Não escolhia, não sei… não consigo.

Fotografia de Sara Brandão – CCA

Esta evolução que veio com a era digital também trouxe novas maneiras de tocar os instrumentos e de fazer música. Achas que o Rock ‘n’ Roll, o som de alguém a tocar uma guitarra ao vivo, e aquela sinergia entre o público e a pessoa que está a tocar no palco pode ter um fim? O Rock ‘n’ Roll não vai morrer?

Eu acho que tudo pode acabar. Quando tu recuas aos anos 20 do século passado, o circo era uma coisa enorme, era provavelmente o maior espetáculo ao vivo que tu podias ver. Às vezes iam 15 ou 20 mil pessoas a um circo, havia circos enormes, e hoje o circo é uma coisa perfeitamente limitada e com muito menos públicos. Portanto estas coisas passam por fases e são coisas que mudam, crescem, desaparecem, voltam a aparecer. Mas eu acho que o Rock ‘n’ Roll nunca vai desaparecer, na realidade. Acho que tens que procurar novas maneiras de fazer as coisas. Não podes fazer Rock ‘n’ Roll como se fazia nos anos 50, 60 ou 70 do século XX; tens que interpretá-lo como uma coisa de hoje, de agora ou do futuro. Isso é plausível. E acho que há muita gente a fazer isso, e eu gosto de pensar que faço Rock ‘n’ Roll de agora e que isso pode mover as pessoas. Eu acho que há uma energia primal no Rock ‘n’ Roll que nunca poderá desaparecer, na realidade.

No teu novo álbum vais continuar a fazer Rock ‘n’ Roll da maneira que tens feito até agora?

Eu acho que não, acho que estou a fazer de outra maneira. Acho que o próximo disco é o disco mais Rock ‘n’ Roll que eu alguma vez fiz, e estou muito feliz com ele e francamente ansioso para que saia, em Setembro.

No Super Bock Super Rock, em 2014, fizeste parte de uma homenagem ao Lou Reed. Qual foi a sensação de prestar aquela homenagem a alguém que foi uma figura tão incontornável da música?

Aquilo foi um convite do Zé Pedro e eu raramente consigo dizer que não aos convites do Zé Pedro. Eu adoro a música do Lou Reed e aquela música, curiosamente, eu já tinha gravado com uma banda francesa chamada The HiFi Klub. Eles são de Toulon e a Nico tocou em Toulon nos anos 80, numa antiga discoteca onde esta banda agora ensaiava e que é um centro cultural, e foi um concerto horrível. Ela fez a primeira parte de um artista francês muito mais popular e correu-lhe extremamente mal. A Nico tocou só com uma acústica, correu mal, foi vaiada e acabou a chorar. E eles souberam que esta história tinha acontecido ali e decidimos fazer um disco, que está no Spotify também, e que curiosamente só existe lá, no iTunes ou em vinil, e decidimos fazer uma espécie de uma vingança para a Nico. Regrávamos quatro canções dela e fizemos o lançamento nesse local, que foi muito bem sucedido e não foi vaiado. Eu acho que ela ia adorar, também.

No SBSR quase todas as músicas foram cantadas por grande parte do público. Os artistas procuram ter esse uníssono nos concertos?

Não sei. Mas já me chega conseguir exprimir-me musicalmente, não tenho essa necessidade de haver um uníssono de aplausos em relação àquilo que eu faço. Basta-me que haja algumas pessoas que gostem, não preciso de uma coisa unânime. Obviamente que eu gosto de chegar às pessoas, a muitas pessoas, não tenho qualquer preconceito com isso, mas não é fundamental para mim. Isto pode ser um bocadinho egoísta mas acho que temos que ser os primeiros a gostar daquilo que fazemos. Acho que é fundamental que sejas um pouco egoísta em qualquer arte que faças, porque a partir do momento em que queres agradar a outra pessoa as coisas não correm bem. Isto às vezes pode parecer que é um egoísmo extremo, mas eu acho que a arte tem que ser francamente egoísta, no sentido em que tu deves ter uma direção e deves segui-la, não abdicando dela.

Há algum momento em que acabe o Legendary Tigerman e sejas apenas o Paulo Furtado, ou andam sempre os dois de mão dada?

Hoje em dia, a maior parte das vezes, o Tigerman só aparece mesmo antes de entrar em palco. Até lá vou vivendo como Paulo Furtado, o que não é mau.

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