“The Mule”: a América, segundo Clint Eastwood
Numa altura em que o eterno mestre do cinema americano celebra o seu octogésimo oitavo aniversário, o estatuto de Clint Eastwood de lenda encontra-se plenamente solidificado. O seu corpo – leia-se a sua presença cénica – traz consigo uma carga simbólica, não muito distante de um certo ideal americano, cujo peso a ausência do realizador do outro lado da câmara nos últimos anos só tem vindo a aumentar. Tal como Jean-Pierre Léaud, que se afigura condenado a desempenhar o papel de corpo fantasmagórico até que efetivamente se torne num fantasma (La Mort de Louis XIV (2016); Le Lion est Mort Ce Soir (2017)), Eastwood, o ator, é irredutível a uma materialização das personagens que encarna.
Sob o nome Earl Stone, em The Mule (2018), tal como em The 15:17 to Paris (2018) os heróis se representavam a si próprios, Clint Eastwood é Clint Eastwood, e neste facto reside grande parte do modernismo deste filme, o mesmo que o autor tem vindo a desenvolver na sua obra recente, pois The Mule marca, em larga medida, um regresso a uma forma de cinema mais clássica. Se podemos ver ecos do caráter procedimental de Sully (2016) na repetição das viagens – inclusivamente assinaladas textualmente – que Earl, horticultor falido transformado em traficante de cocaína, faz pelos EUA na sua carrinha, as referências mais próximas dos construção e desenvolvimento das personagens, melodramáticos em essência, precedem esta década.
Nos Estados Unidos, The Mule teve lançamento comercial ainda no ano passado, o mesmo da sua obra anterior e, apesar de alguma disparidade formal entre elas (curiosamente, favorecendo, em termos de consenso crítico, a mais recente, colocando em evidência a preferência da crítica por obras mais convencionais), em mais que uma maneira podemos ver The Mule como uma continuação da exploração temática de The 15:17 to Paris. A história de Spencer Stone, Alek Skarlatos e Anthony Sadler pode ter servido para Eastwood questionar as fundações da cultura norte-americana e o seu impacto na sociedade atual por via dos jovens que ela forma, mas desde cedo em The Mule somos advertidos para o facto de o octogenário estar fundamentalmente alienado de muitos aspetos mais recentes e estruturais para essa cultura – longe da Rede Mundial, que culpa pela sua ruína, incapaz de enviar mensagens de texto e ingénuo ao ponto de não saber estar a transportar narcóticos até abrir um dos sacos na sua mala, Earl Stone/ Clint Eastwood poderá ter uma visão enviesada sobre o seu país natal, contudo, quer seja apesar disso ou precisamente por causa disso, o seu olhar é incisivo e revelador. Onde The 15:17 to Paris era a exclusiva aplicação de um olhar exterior (à cabeça vem a repetição do motivo do selfie stick), The Mule desdobra-se em exteroceção e interoceção.
Um dos temas que esse olhar favorece é o preconceito, e o racismo particularmente. Por a personagem de Earl não corresponder ao estereótipo de traficante de droga, sistematicamente escapa às autoridades que o procuram. Enquanto isto, pessoas de pele mais escura inocentes são questionadas e assediadas pela polícia – o mediatismo do caso americano é notável, mas leituras universalistas não são difíceis. O preconceito surge como obstáculo ao bom funcionamento de instituições (supostamente) democráticas, o que dá origem a uma estranha comédia de costumes. Esta é particularmente relevante e engraçada por a piada estar invariavelmente na estupidez do discriminador, ao contrário dos mau gosto e vileza de um filme como Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (2017), onde, por virtude do esforço (mal sucedido) para dotar personagens inequivocamente desprezíveis de alguma ambiguidade moral, a piada reside no próprio ato discriminatório. O diálogo e a compreensão mútua surgem como as soluções para os conflitos: numa cena em que Earl é corrigido por um casal negro por utilizar um vocábulo insultuoso, a troca de dois “a sério”, o primeiro interrogativo, o segundo afirmativo, é o suficiente para que todos fiquem amigos. Este progressismo social do filme vai de encontro ao seu lado mais tradicional, desenvolvido no drama familiar, que é sobretudo pautado por valores mais conservadores e patriarcais. A figura de pai do protagonista é confrontada pelas mulheres da sua família com a sua falta de consideração por elas, que se tornaram secundárias ao seu trabalho. Estes erros são, por fim, por ele reconhecidos e, tanto quanto possível, corrigidos.
A lenda de Eastwood continua viva e assim se manterá. O realizador é uma figura paradoxal, caraterística que se reflete nos seus filmes. Os conflitos e contrastes permeiam este The Mule: entre o modernismo e o classicismo, o progressismo e o tradicionalismo, entre o caráter autocrítico e os elementos mais egotistas de culto da personalidade. O final, que parece caminhar para o agridoce, mas bonito, simples, enfim, um momento de catarse, com Earl Stone a assumir-se como um homem justo e honesto, subitamente dá uma reviravolta: nos últimos planos, vemos o protagonista de volta ao seu trabalho, a fazer aquilo de que mais gosta, atrás do muro de uma prisão, fazendo-nos questionar o significado de liberdade, e se afinal terá havido vencedores nesta história, com Earl a sair impune – afinal o velho ainda tem qualquer coisa de enfant terrible. Talvez por este complexo caráter paradoxal, Clint Eastwood tem vindo a tornar-se um símbolo de um país de contrastes como os EUA.