“The Substance”, de Coralie Fargeat: feminismo em filme punk
Este artigo pode conter spoilers.
Da realizadora francesa Coralie Fargeat, que em 2017 se estreou nas longas-metragens com o surpreendente, violento e muito aconselhável “Revenge”, chega-nos agora “The Substance”, protagonizado por Demi Moore e Margaret Qualley. Neste filme premiado no Festival Cannes com o Melhor Argumento, partimos para uma verdadeira experiência de body horror visceral que mergulha profundamente no desejo de permanência física e na obsessão pela juventude eterna numa indústria do entretenimento que vive maioritariamente da imagem.
Coralie Fargeat, já conhecida desde esse seu primeiro filme pelo seu estilo ousado, oferece uma visão crítica do culto à celebridade e da pressão estética que paira sobre as estrelas de Hollywood e que é exercida pelos “donos” da indústria, aqui protagonizado por um Dennis Quaid “em ácidos” e opinativo sobre a estética feminina. Habilmente, “The Substance” usa o horror físico não apenas para chocar, mas como uma metáfora poderosa da degradação emocional e física que a busca por fama e juventude pode acarretar. Em suma, o preço a pagar pelo nosso bem mais precioso, o tempo.
O enredo segue a personagem de Demi Moore, uma atriz veterana que, pressionada pela relevância e pela sombra de uma carreira em declínio, vê nos tratamentos extremos de rejuvenescimento uma esperança de renovação e novo impulso profissional. Neste caso concreto esse tratamento é uma “substância” em forma de “elixir da juventude”, que deve ser tomada com precauções e que faz sair de dentro de nós uma versão renovada, interpretada por Margaret Qualley que representa o contraste: a nova geração pronta para tomar o lugar das veteranas, mas igualmente exposta às armadilhas da fama. O relacionamento entre ambas gera uma tensão intensa que explode em momentos de puro horror, deixando claro o impacto psicológico que a indústria exerce sobretudo — e especialmente — sobre a Mulher.
A escolha de Fargeat por um estilo visual punk muitas vezes de ângulos e influência kubrickianas contribui para a atmosfera frenética do filme, onde os limites entre o grotesco e o sublime se tornam cada vez mais ténues. A estética saturada e distorcida leva-nos para a mente fragmentada das personagens e amplifica a desconexão entre a sua aparência externa e os conflitos que enfrentam internamente. Esse “body horror” — ou “horror corporal” no nosso português — é um dos pontos altos do filme e Fargeat explora o género de forma criativa, transformando a degradação física num ato de resistência feminina que só nos poderia ser trazido por uma realizadora, na forma como explora e usa o corpo da mulher para proveito da mensagem a passar. Ainda em forma de nota de rodapé, deixa-se para complementar a este “The Substance” as recomendações pelo também punk “Titane”, de Julia Ducournau e o mais recente e repleto de humor negro (bem ao estilo norueguês) “Sick of Myself”.
Uma palavra especial para o casting de Demi Moore, que não é aleatório ou ocasional. Tal como a personagem por si interpretada, Demi Moore esteve ao longo de toda a sua carreira um pouco refém da sua própria imagem e presa a um typecast, pelo que se trata de um papel quase auto-biográfico e que aqui transporta a atriz para um papel de carreira, à semelhança do que Michael Keaton teve em “Birdman”, em parte pelas mesmas razões.
“The Substance” é, acima de tudo, uma obra feminista que questiona os sacrifícios exigidos às mulheres na indústria cinematográfica, especialmente à medida que envelhecem. Moore e Qualley são duas faces da mesma moeda/corpo que nos deixam performances arrepiantes e íntimas, que vão além do terror físico, mergulhando na vulnerabilidade emocional das suas personagens e expondo-se sem barreiras. O filme deixa uma reflexão poderosa sobre o preço da fama e a necessidade de aceitação num mundo que idolatra o “novo” e a permanente renovação do ser e da estética. “The Substance” é uma experiência desconcertante e impactante que nos fica a ressoar na mente, sugerindo que, por mais que se altere a aparência, a verdade sobre a natureza humana continua sempre em nós.