Tim Hecker e Konoyo Ensemble na Culturgest: música etérea envolta em fumo
Ao entrarmos no Grande Auditório da Culturgest, para assistir à estreia europeia do mais recente projecto de Tim Hecker, Konoyo, parece termos chegado a uma sala de espera para atravessar um qualquer portal, cujos contornos se dissolviam pelo fumo solto pelas máquinas em palco. Parte do mote para a noite estava lançado: uma experiência imersiva, em que a música, tal como o fumo, nos envolveria e desconcertaria. As pessoas falavam com um tom cuidado, como se num local de culto se encontrassem, e simplesmente esperavam o início do espectáculo. Quando as luzes baixaram, deixando apenas os números das filas a alumiar o ambiente, fez-se silêncio.
A primeira parte ficou a cabo de Kara-Lis Coverdale. A artista veio mostrar a sua própria música ambiente antes de fazer a ligação com o que se seguiria e tomar parte no Konoyo Ensemble que acompanharia Hecker. A actuação não demorou muito até chegar a paisagens sonoras coloridas e pixelizadas, que lembravam bandas sonoras de filmes didácticos dos anos 80, com modelos 3D renderizados em softwares datados. A nostalgia e o deslumbramento que a descrição sugere não se verificaram, e o concerto acabou por ser um aperitivo pobre quando comparado com o misticismo do mundo de Konoyo. A meticulosidade do trabalho da artista revelou-se mais frutífera aquando da passagem sem costuras para a atracção principal da noite.
Com um espectáculo de luzes minimalista, a disposição do palco – ladeado pelas mesas de Kara-Lis e Tim, e com centro no shōko, um gongo de bronze característico do gagaku, género de música clássica do Japão – e cada vez mais fumo, todo o aparato lembrava histórias do folclore japonês. Especificamente, vem-nos à mente o segmento “Hoichi the Earless”, do filme antológico Kwaidan, de Masaki Kobayashi, que, de resto, aconselhamos vivamente. A música começa, sinistra e etérea, com os rasgos de percussão do shōko e baques amadeirados, como berlindes a descer escadas. Há uma subtileza na progressão e uma preocupação redobrada com a sobreposição de camadas de som.
Motonori Miura, Manami Sato e Fumiya Otonashi, membros do conjunto gagaku Tokyo Gakuso que compõem agora o Konoyo Ensemble, apareciam e desapareciam por detrás da cortina de fumo, contribuindo para a massa sonora com percussão, voz e instrumentos de sopro (o hichiriki e o ryūteki). Estes dois últimos produziam silvos únicos, que se complementavam e ascendiam até quase desafinar, testando os limites do som e desafiando a música electrónica de Tim. É complicado entender exactamente porquê, mas havia algo de emocionante nessas notas agudas. Começam com um toque de paz e ordem, revelando depois uma ameaça insidiosa que toca em algo dentro de nós. É como olhar para o abismo, altura em que se manifesta a nossa curiosidade pelo desconhecido e pelo que nos assusta.
A base que suportava o espectáculo era a componente electrónica, que avançava vagarosamente, como um chamamento lento e denso. O som foi crescendo e crescendo até aos píncaros da definição, envolvendo-nos sem nos repelir, mesmo nas partes que deviam mais ao noise. A certa altura, Tim Hecker fica sozinho em palco, com os seus equipamentos electrónicos e dá-nos uma versão mais pura da sua música, sem a fusão característica de Konoyo, mas que enriqueceu o espectáculo sem quebras – foi tudo uma grande peça; cerca de uma hora e meia de mutações continuadas que culminou nos fortes aplausos do público. Com ou sem influência do gagaku, a sua música é sempre hipnótica e a audiência esgotada por fãs de música ambiente não lhe fica indiferente.
O concerto acabou com Tim a reduzir a definição sonora, como se o som saísse de um gravador, sugerindo que talvez tudo tivesse sido uma espécie de memória revisitada em cassete. O que quer que tinha sido, foi belo e impossível de ignorar. A travessia entre o gagaku japonês e a música ambiente canadiana faz-se em Konoyo, reduzindo a distância do Oceano Pacífico e de anos de História através da música. No fim, sentimo-nos privilegiados por termos sido dos primeiros a fazer esta viagem com Tim Hecker e o Konoyo Ensemble.