“Toda a Gente Gosta de Jeanne”, de Céline Devaux: para rir no momento errado
Este artigo pode conter spoilers.
Jeanne Mayer (Blanche Gardin) dirige um projeto de investigação ambiental dedicado à recolha de microplásticos no oceano. Durante a inauguração, a estrutura colapsa e a protagonista é apanhada em direto para a televisão numa tentativa fracassada de resgatar o seu trabalho em pleno mar, tornando-se um meme pela chacota. Afundada em dívidas, e ajudada pelo seu irmão, vai até Lisboa com o intuito de vender o apartamento da sua falecida mãe, na esperança de recuperar algum fôlego financeiro. No aeroporto, reencontra Jean (Laurent Lafitte), um antigo colega da sua escola secundária, cleptomaníaco, inoportuno e inocentemente divertido.
“Toda a Gente Gosta de Jeanne” (do original Tout le monde aime Jeanne), uma coprodução entre a Les Films du Worso e a produtora portuguesa O Som e a Fúria, é a primeira longa-metragem da realizadora Céline Devaux, e teve a sua estreia mundial na Semana da Crítica do Festival de Cannes.
Em Lisboa, Jeanne vive um triângulo amoroso entre o Jean e o seu carismático ex-companheiro, Vítor (Nuno Lopes), agora casado e com uma filha. Dividida entre o ser e o parecer, a parisiense mantém uma postura defensiva e por vezes pretensiosa em relação a Jean. Atitudes justificadas pelo carácter, intrínsecas à sua forma de ser, comunicadas através da voz da sua consciência, com quem partilha o protagonismo do filme.
Nesta trama amorosa, Devaux consegue afastar-se do típico Amor Acontece, sem cair na atípica fórmula boy meets girl à la Woody Allen. Recorre às personagens secundárias para estruturar a personalidade protagonista, sem retirar presença ou carácter aos dois pretendentes — o que, em grande parte, se deve às excelentes performances de Laurent Lafitte e Nuno Lopes.
A escolha da capital portuguesa não foi aleatória, tal como é referido pela personagem Jean, a determinado ponto do filme “a ansiedade é mais difícil em cenários bonitos”. A realizadora confessou, inclusivamente, sentir alguma ambiguidade na beleza de Lisboa, uma cidade radiante, de arquitetura e beleza natural, destruída pela crise económica e reerguida para ser desocupada dos seus residentes e preenchida por turistas.
À semelhança da capital lusitana e do apartamento deixado pela sua mãe, também Jeanne é um local de memórias encaixotadas, um recetáculo de pensamentos sombrios, porém, rodeado de sol e cor. Gardin transparece esta ideia com destreza e simplicidade, seja pela expressão corporal como pelas feições que correspondem à voz da consciência de Jeanne. Estas características da protagonista parecem surgir para desmistificar alguns dos preconceitos criados em torno da temática da depressão. O filme recorre frequentemente ao humor, negro e acídico, para criar momentos de seriedade e introspeção, tal como refere a realizadora “é como rir num funeral”, evitando assim o sentimento de pena e comiseração e apelando antes à empatia, que afunda como uma rocha em momentos do quotidiano da protagonista.
Apesar dos lugares-comuns que o ponto de partida fornece, “Toda a Gente Gosta de Jeanne” é um filme audaz no seu conteúdo, que desafia as convenções da típica comédia romântica através de um ótimo trabalho de escrita de argumento e aborda temáticas como a saúde mental, a depressão e o luto de forma atual e singular, sem recorrer a clichés e dramatismos desnecessários.
A voz interior da protagonista, representada por breves segmentos de animação, da autoria da realizadora, desempenha um dos papéis centrais do filme. Estas tiras animadas, além de muito bem concebidas, resultado dos anos de experiência de Dévaux em curtas-metragens de animação (Vie et mort de l’Illustre Grigori Efimovitch Raspoutine; Le repas dominical), apresentam um poderoso elemento de dimensão e construção de personagem.
Apesar de ser, em parte, exímio na execução, o filme fica a desejar na forma e na expressão audiovisual, no sentido em que apenas assistimos a vislumbres de uma nova e promissora voz do cinema francês. É evidente que Dévaux procura uma identidade ao experimentar com enquadramentos e justapondo com animações que ilustram a consciência da protagonista, no entanto, na grande maioria das cenas, a realizadora parece jogar pelo seguro, mantendo-se dentro das convenções da linguagem cinematográfica.
Em última análise, “Toda a Gente Gosta de Jeanne”, um filme sobre “uma mulher que pilota aviões, fica sem radar e perde-se no céu”, é uma obra ligeira, soalheiro, que diverte e bem-dispõe.