Trauma, subjetividade e som em “A Wandering Path”

por Cronista convidado,    23 Outubro, 2022
Trauma, subjetividade e som em “A Wandering Path”

Esta crónica é da autoria de Fábio Mateus e no âmbito do festival Sonica Ekrano – Cinema Documental e as Músicas das Margens, a acontecer entre os dias 21 e 29 de Outubro, no Barreiro.

O som[1], como a arte em geral, é a substantivação, a materialização, a encarnação do sofrimento humano. E a criação é, inevitavelmente, o filho, o produto, da dor. 

Tornou-se quase um cliché associar e identificar o rock psicadélico (como a arte surrealista), ao movimento psicanalítico. Entenda-se aqui ‘psicanalítico’ não como psicanálise, estrito senso, mas mais como psico-análise. Isto é, como um terreno para praticar a ação de pensar sobre os pensamentos, sentir os sentimentos, associar livremente, e viver a experiência de contacto com o mundo interno e de unidade com o cosmos. Curioso, no entanto, que seja no doom, death metal, e até no punk, (e não no rock psicadélico) que encontramos as maiores aproximações possíveis ao imaginário freudiano

A Wandering Path

Rock psicadélico enquanto ode ao psiquismo. Doom e thrash enquanto concretização do imaginário psicanalítico em forma de objecto cultural. 

Em quantas dimensões psicanalíticas diferentes conseguimos interpretar este documentário? 

  1. No princípio era o som (ou, no princípio era a sensação):

Ruídos ásperos, velocidades sobre-humanas, dor, gritos agonizantes, lendários, primordiais, arrancados do submundo (submundo muito mais freudiano do que aquilo que encontramos no paraíso psicadélico). 

Psicadelismo como paraíso e ideal transcendente de unidade com o universo, e doom como representante do inferno terrestre e da dor psíquica concretizada no corpo e no mundo. Um mundo povoado por meias pessoas, decapitadas, mortas-vivas, fantasmas, pessoas deformadas, parciais, violentas, sexuais, revoltadas e putrefactas. A criação sonora como (re)produção, e, alusão à sensação de fragmentação, dissolução e morte. Ou ainda, a criação sonora enquanto representante do sofrimento e do ódio ancestral, inominável, do mágico, do sem-nome, do desconhecido, do temível. Uma espécie de catarse por identificação a um arquétipo habitualmente censurado para uma espécie de inconsciência colectiva legitimada pela ordem social estabelecida. 

  1. No princípio era a palavra (ou, no princípio era o verbo):

Catarse dupla, não apenas nas sensações provocadas pelo som, mas também pelo sentido impresso e gravado na letra. Florestas negras, densas, misteriosas, míticas, lendárias, mágicas, a subversão da cristandade, a negação e revolta contra a autoridade e os valores das religiões abraâmicas, a subversão do bom, do prazeroso, do belo, a vingança, o ódio, a guerra, a fome, a injustiça, o trauma. Letra e sonoridades postas em ação pelo domínio de um instrumento. 

E como tocar sem dor? Dor psíquica, sim, mas refiro-me especificamente à dor física, literal. O domínio da técnica e a produção daquele som sai já dos instrumentos com dor impressa em sangue, suor e lágrimas (‘playing through – dentro/através – the pain’). 

  1. No princípio era o desejo (ou, no princípio era a intersubjectividade):

Pergunto-me: o que procuramos no metal? O desejo censurado tornado, transitoriamente, possível pela identificação a conteúdos imaginários promovendo uma descarga afetiva, catártica, permitindo conter, assim, os impulsos na fantasia? Sim. Mas penso que é sobretudo devido ao facto de serem desejos percepcionados enquanto ‘desejos partilhados’ que se consegue legitimar todo um universo mental que se constitui em torno do trauma. Talvez seja isso. Não apenas no metal, mas em qualquer produção artística. A criação de uma identidade partilhada, cumprindo uma função de promoção de uma ideia de unidade entre o representante externo como significante da dor interna. Criando-se assim uma intersubjectividade que se assemelha a um retorno à simbiose intra-uterina, mais tarde, perdida, e apenas recuperada na fantasia, imageante. Metal: Arte satânica[2] como contra-investimento à ordem estabelecida. Quid est Veritas?


[1] A produção artística na música corresponde à ideia de sons organizados (ou não) de forma intencional com o propósito de se fazer representar uma imagem ou uma ideia. O som, por si só, não se enquadraria enquanto modo de substantivação de nada. Não obstante, no âmbito do presente texto, consideramos que a própria organização do som, na mente, implica também uma organização intra-psíquica do percepto e com isso a produção de um sentido. E essa construção de sentido é também ela uma criação artística. Por outras palavras: a forma como organizamos o som implica uma deformação da coisa-em-si numa coisa-em-mim, e com isso a criação de algo de novo único. Assim, o processo de criação intencional de objectos artísticos não é mais que uma derivação do que já acontece de forma não-intencional no seio do próprio aparato psíquico. Se é certo que existem criações, ou construções mentais, que não provocam dor (porque estão ao serviço do desejo – catarse), as criações intrapsíquicas que são mutativas, isto é, que permitem a deformação do eu, só podem ocorrer com dor. Porque implicam o abandono de uma parte da mente a favor de uma nova construção. E esta (parece) ser a base daquilo que é a finalidade do objecto artístico, ou seja: descarga e modificação da forma.  

[2] Leia-se satânico aqui enquanto cliché (a verdade que a caricatura esconde) e enquanto representante da renúncia à ordem e ética cristãs.

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A WANDERING PATH: The story of Gilead Media, de Michael Dimmit, estará em exibição no Cineclube do Barreiro no dia 29 de Outubro, às 17h30, no âmbito do festival Sonica Ekrano – Cinema Documental e as Músicas das Margens, a acontecer entre os dias 21 e 29 de Outubro, no Barreiro.

Texto de Fábio Mateus, psicólogo, presidente da Associação de Psicologia e Desenvolvimento Comunitário.

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