Três histórias e o legado
O rosto vil e negro da morte lá nos colheu, com olímpica indiferença, a vida do Presidente Sampaio.
A morte é essencialmente uma projeção dupla: do passado de quem partiu e do futuro dos que cá ficam. A primeira, num caso como o do Presidente Sampaio, contende com a grandeza do homem e a segunda com o legado que deixa.
Para o Presidente Sampaio, não pode haver a tentação de o definir cabalmente, mas há o conforto de existirem momentos que resumem o essencial de quem ele foi. Trago à colação três histórias.
A primeira remonta ao seu exemplo enquanto líder da Reunião Inter-Associações (RIA). Coincidiram os tempos da sua liderança com os da crise académica de 1962, um dos grandes abalos no regime fascista de Salazar, e serviram estes tempos para evidenciar uma característica essencial do Presidente Sampaio: a resistência. A capacidade para não vergar esteve naquela crise académica, no Tribunal Plenário na defesa de presos políticos, naquela custosa decisão pessoal de se candidatar à Câmara de Lisboa e na força anímica para não repetir, em 96, o desaire de 91 contra Cavaco.
A segunda remonta ao seu exemplo comovente na luta pela independência de Timor. Na libertação de Timor coube tudo o que o Presidente Sampaio foi: um humanista que se emocionava e simpatizava de forma automática com o outro e um conhecedor de que existe uma dimensão da dignidade humana que é coletiva cumprindo-se apenas quando está garantido o respeito universal. Foi isso que motivou aquela atuação em Timor, aquele doloroso abraço a Paulo Teixeira, o Presidente da Câmara de Castelo de Paiva naquele fatídico dia de março de 2001; ou na militância desinteressada em prol dos refugiados sírios e, ainda há dias, dos refugiados afegãos.
A derradeira história que convoco passou-se em Mafómedes, concelho de Baião. O Presidente Sampaio visitava a região e foi confrontado com a situação das gémeas Andreia e Oriana Belchior, duas crianças que tinham como certo o abandono escolar, findo a primária, por incapacidade de a família providenciar transporte para a nova escola. O Presidente Sampaio com o seu voluntarismo orquestrou uma solução e no dia seguinte a Câmara Municipal de Baião, com o consentimento dos pais, providenciou o transporte para as gémeas. Aquele instante mudou para sempre e para melhor a vida de duas pessoas e tudo por força de uma forma apaixonada de servir os outros que o Presidente Sampaio sempre teve.
Quanto ao legado do Presidente Sampaio, ele é imenso, mas há uma condensação prodigiosa que a mãe Fernanda um dia escreveu. Corria a crise académica de 1962 e escrevia para o filho as seguintes palavras: “Sei que tens feito o teu melhor, lutaste por aquilo em que acreditas. Lutaste pelo que pensas ser um futuro melhor para a juventude em Portugal. Tens razão, eu sei. Tentaste e tentaste, trabalhaste duramente e eu sei que já ganhaste parte da batalha; pelo menos lançaste as sementes que mais tarde crescerão, mais fortes e mais puras.” Ser semente de um futuro melhor, uma forma de os grandes se libertarem do pó a que Deus lembrou Adão de ser — pelo menos para os que acreditam.
Neste momento triste, vem-me à memória aquela frase do Vergílio Ferreira que dizia que “chorar a morte dos outros é chorar sobre nós”. Contudo, o choro de hoje vem carregado com a tenebrosa constatação de que choramos a perda de uma das nossas melhores partes que é o que acontece sempre que morre um herói.
Crónica de Tiago Cunha
O Tiago estuda direito, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, é socialista, republicano, laico e portista.