Um bicho de vinte cabeças num festival
Inquietam-me as diferenças no tratamento das diferenças. Cada país seu ditado, cada lugar suas regras, bem sabemos, mas no que toca à forma como lidamos coletivamente com a condição de “ser diferente”, seja uma deficiência física ou intelectual, é inquietante constatar que na Europa dos direitos, países tão similares atuem de forma tão distinta. A culpa não é de ninguém. Ou melhor, de quem é a culpa pouco interessa. Mas interessa assumir que a vivência de alguém com diversidade funcional é absolutamente condicionada pela forma como as sociedades e as instituições encaram essa diferença. Portugal não é um bom exemplo, a diferentes níveis.
Desloco-me numa cadeira de rodas há 16 anos e, a par de outras obrigações associativas, faço a direção artística do festival BONS SONS. Acumulo assim duas perspectivas: a de quem lida com um país impreparado e desinformado sobre a deficiência, e a de quem trabalha para que o evento que organiza consiga acolher e integrar todas as pessoas, todas as diferenças, materializando a mensagem de inclusão que o BONS SONS tão bem comunica através do mote “Vem viver a aldeia”.
Sobre a deficiência, interessa-me contribuir para o conhecimento coletivo sobre as diferenças, contingências e necessidades de cada condição, no caminho da verdadeira inclusão. Interessa-me descomplicar, interessa-me desmontar a ideia enraizada de que a deficiência é um desafio sobre-humano, um bicho de vinte cabeças que impossibilita uma vivência feliz. Não acredito nisto. Acredito que é possível crescer e ser feliz numa condição menos “normal”, reunidas as condições. Ficará até aqui por abordar esta ideia coletiva e errada do “ser diferente”, como se não fôssemos todos diferentes uns dos outros, como se não fossemos todos absolutamente singulares e apesar de tudo merecedores de iguais direitos, independentemente do género, da orientação sexual, da ideologia ou da condição de cada um.
Em Portugal, a deficiência, tal como outras diferenças, é distante, é isolada, foi escondida durante tanto tempo que a sociedade não sabe olhar, falar ou encarar-nos. Sair à rua numa cadeira de rodas é descobrir a estranheza nos olhos das pessoas, apesar de todas as boas vontades. Sobre isto, ninguém tem culpa, nem há que apontar responsabilidades. Acredito mesmo que a desinformação surge por falta de contacto, e esta característica tão portuguesa de estranhar aquilo que achamos diferente… Não apontar dedos a ninguém significa para mim assumir uma postura tranquila e pedagógica, acreditando que, bem explicadas as coisas, chegamos facilmente a soluções concretas, que preparam as pessoas e os espaços para acolher e incluir todos.
Aos agentes culturais, nos quais me incluo, pede-se mais humanidade na forma como pensam e agem para a inclusão da diferença. Pede-se um olhar atento e quase individual, enquanto as boas práticas não se generalizam, enquanto não nos equiparamos aos países vizinhos notoriamente mais preparados.
Garantir uma verdadeira inclusão não é criar plataformas elevadas, isoladas e afastadas do restante do público, mas sim garantir que uma pessoa com mobilidade reduzida está no meio do público, em segurança e com visibilidade para o palco, acompanhada pelo grupo de amigos. É assumir que uma pessoa com deficiência necessita, na maioria dos casos, de se deslocar com um acompanhante/assistente, e que a este acompanhante deve ser garantida entrada gratuita nos eventos. É assumir que a deficiência é diversa e que não se reduz às cadeiras de rodas, pelo que devem ser garantidas outras ferramentas como a áudio descrição para pessoas com deficiência visual, a legendagem para surdos, o braille ou Língua Gestual Portuguesa. É investir e preparar os espaços de campismo e outros alojamentos para acolher todas as diversidades. É generalizar de uma vez as rampas e WC adaptados. É até assumir que há pessoas com diversidade funcional que são músicos, artistas, palestrantes, performers, que desenvolvem trabalho de grande qualidade e que interessa integrar nas programações. É, mais que não seja, preparar equipas para receber, respeitar e contribuir para um ambiente mais inclusivo, onde se torne óbvio que todas as pessoas são bem-vindas, todas as pessoas são integradas e incluídas nas propostas culturais e na vida em sociedade como um todo.
Crónica de Miguel Atalaia.
Miguel Atalaia, 33 anos, designer gráfico no gabinete de comunicação do Município da Chamusca e diretor artístico do BONS SONS – festival que acolhe 35.000 pessoas anualmente na aldeia de Cem Soldos (Tomar), de onde é natural. Mantém uma forte ligação ao associativismo, integrando, desde 2014, a direção do Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS), do qual foi presidente no biénio 2020-2021. Destaca-se especialmente pelo trabalho associativo nas áreas da comunicação, educação e envolvimento da comunidade. Tem uma deficiência física adquirida desde 2006 e é beneficiário do projeto piloto Vida Independente, em implementação em Portugal desde 2019.