‘Um Cavalo Entra Num Bar’: uma piada é muito mais do que uma piada
Numa época em que o riso tem de ser comedido ou inexistente, por imperativos de correcção política, David Grossman (Jerusalém, 1954) propõe a catarse individual e colectiva através de um número de stand-up comedy. O risco, enorme, compensou.
“Um Cavalo Entra Num Bar” (Dom Quixote) é um forte candidato a constar nas tradicionais listas de melhores livros do ano.
Um homem está sozinho em palco perante uma sala com muito público. Esse homem, Dov Grinstein (ou Dovaleh) de seu nome, está sempre sobre o fio da navalha. A sua intervenção não se resume a um desfiar de anedotas, com mais ou menos conteúdo sociológico. Ele aborda traumas pessoais contextualizados por uma consciência colectiva moldada pelo conflito israelo-palestiniano, os rituais religiosos e, obviamente, a Shoah (holocausto).
O público daquele bar situado em Netanya, pequena cidade israelita, oscila entre a satisfação, a incredulidade e a repulsa.
Nesse público está o juiz Avishai Lazar, que conhece o comediante desde criança, com capacidade para fazer de contraponto. Ele foi convidado por Dovaleh, apesar de não se verem há décadas, para dar o seu veredicto, sincero e sucinto como as sentenças que foi dando ao longo da sua carreira de magistrado. A observar atentamente o comediante está também o leitor.
O narrador Avishai Lazar esbate a confortável distância entre o personagem e o leitor. Um está perante o outro. Um observa o outro que se desnuda e se violenta.
Se o proposto é uma stand-up comedy, o que sai da mente do escritor israelita é mais do que isso. Uma piada é mais do que uma piada, e “Um Cavalo Entra Num Bar” (vencedor do Man Booker Prize) é bem mais do que um número de comédia. A constante dissonância no registo resulta numa montanha russa de emoções. O leitor ri com a auto-depreciação de Dovaleh para de seguida ficar desconcertado com a história do motorista que conta anedotas enquanto o comediante, em criança, vai ao enterro do pai; ou com a narração das constantes tareias dadas pelo seu “papai quebra-mãos”; ou ainda com as situações de bullying sofridas em criança.
“[As pessoas] Percebem cada vez menos em que é que involuntariamente estão a participar. Não tenho dúvidas de que há muito se teriam levantado e saído, ou até o teriam expulsado do palco com vaias e gritos, não fosse a tentação a que é tão difícil resistir – a de espreitar o inferno do outro”.
Muito do que é contado não se passou bem assim. Há muitas dolorosas recordações que foram limadas pelo tempo.
A capacidade de Grossman é de sublinhar: consegue manter o leitor agarrado ao texto, com toda a atenção dedicada ao comediante e à sua dissonante relação com quem o observa. Dovaleh toca nos pontos familiares- não necessariamente naturais – que agrupam os seres humanos. As rotinas são vistas ao pormenor e com a naturalidade de quem as diagnostica como absurdas. O mesmo se passa com a própria existência. Aos poucos, Dovaleh encaminha-se para o epílogo. É aí que ele quer chegar desde o princípio. Entretanto, ficaram os mais resilientes, os mais próximos, que, entre acenos de apreço, ouviram e acompanharam o percurso infernal até à epifania.
Esse caminho é feito de depreciação, violência dirigida contra si próprio, revelações pessoais desde a infância até ao momento em que ele actua. Dovaleh denomina-se, entre outros termos pejorativos, de “projecto falhado”.
A fuga à realidade começou ainda na meninice. Dovaleh, para fugir ao bullying, optava por andar sobre as mãos, vendo o mundo ao contrário. Esse calculismo “não se dissolveu no sangue até hoje”. Sobre o palco e defronte do público que o observa, este homem de meia-idade enfrenta essas estratégias calculistas que o aprisionam em adulto.
“Bate em si próprio com as mãos abertas, os dedos esticados: na cara, nas costelas, na barriga. Aquilo parece uma luta de pelo menos duas pessoas. No turbilhão dos membros e das expressões reconheço o aspecto que o seu rosto assumiu mais de uma vez esta noite: a fusão com o seu agressor. Bate em si com as mãos que não são as suas.”
David Grossman optou por uma cenografia minimalista para permitir que o leitor se concentre no mais importante: a dialéctica entre um homem que se debate com a culpa, que se defende com a piada e o sarcasmo, e as expectativas de quem o vê e ouve.
No final, fica a pergunta: Afinal, quem é uma piada? Dovaleh ou o leitor?