Um hino à lusofonia
Enquanto debitamos sobre as grandes influências culturais modernas, vêm-nos logo à cabeça as anglófonas e as francófonas. O ápice da literatura de um lado e a irreverência do cinema no outro. Isto como notas de destaque. É claro que muito mais se pode detetar como referências. É claro que não só da arte e da criação se faz aquilo que orienta o padrão de vida de cada um. Porém, muito se faz desta porque é esta que estuda e compreende a existência humana, tanto por si só como integrada em sociedade.
No meio de ocidentalismos e orientalismos, há a lusofonia. Corrente propiciada pelos povos que formam os países de língua portuguesa e proporcionada por décadas de descobrimentos e de novidades. Revelações efetuadas em crónicas que ficaram para a história do mundo. Fernão Lopes e Fernão Mendes Pinto a redigir em bom português as diferentes peripécias numa fase em que Portugal desbravava caminho e difundia os seus costumes. Na base, o idioma. A formação dos indígenas e dos vindouros foi encarregue pelas gentes sabidas e experimentadas, incluindo as faixas missionárias. Relegue-se aquilo que defendiam mas valorize-se as asas que deram ao crescimento da lusofonia como unidade de sentido global e cultural.
De momento, são oito os países de língua oficial portuguesa. Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Timor Leste. São todos estes órgãos formais e institucionais assentes por uma cultura profundamente influenciada pelas sementes linguísticas plantadas séculos atrás. No entanto, e acima de serem órgãos burocráticos e políticos, são essa cultura na qual assentam. A cultura é aquilo que define uma nação. Aquilo que são, aquilo que costumam fazer nesta ou naquela data, aquilo que deixam como legado da sua história, aquilo que produzem através das letras ou das figuras. Sendo esse o pilar fulcral de qualquer país, é indiscutível o valor que a lusofonia possui na sua génese.
Contudo, é óbvio que o ramo lusófono não está à frente de influências anglófonas, francófonas, hispanófonas e demais orientais. A lusofonia não tem a extensão territorial nem a visibilidade que outras forças geográficas foram granjeando. O perfume francês, a sensibilidade germânica, a sabedoria budista e confucionista, a tragédia grega, a problematização inglesa, a retumbância russa, o nascimento e renascimento italiano ou a cultura pop americana sempre estiveram por cima de quaisquer manifestações da lusofonia. Isto a um nível mundial. No entanto, lamenta-se. Lamenta-se sobretudo por aqueles que prescindem das influências nativas para procurar um consenso internacional. Lamenta-se porque temos muito por onde nos vangloriar, sem precisar de investigar minuciosamente opiniões de terceiros de rumos distintos e de idiomas diversos. Temos por cá aquilo que necessitamos para afirmar a lusofonia como força independente e desvinculada de outras manifestações culturais.
Comece-se pela literatura. Perfumados por fragrâncias antigas, surgiu Luís Vaz de Camões, nome incontestável da lusofonia. Lírico pioneiro em epopeias heróicas e mitológicas dos tempos dos Descobrimentos, eternizando figuras criadas em solo luso. Como seus contemporâneos, houve Gil Vicente ou Bernardim Ribeiro, fundamentais na dramaturgia numa idade que se tingia de ouro. Padre António Vieira, um dos tais evangelizadores que pregou sermões aos peixes e às demais comunidades sencientes, dispostos a serem entendidos por aqueles que o bem quisessem. No seguimento destes, outros tantos influentes. Foi Almeida Garrett, foi Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queirós. Por meio de viagens e de várias miragens, foram contos únicos os nascidos e imbuídos em traçados realistas de prezar. Numa outra geração, os vanguardistas e fulgurantes Fernando Pessoa (e que nome este), Florbela Espanca, Mário de Sá Carneiro, José Régio, Miguel Torga, José Saramago (valeu um Nobel), Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes. Ali no Brasil, os modernos Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Machado Assis, Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Marguerite Yourcenar, Jorge Amado e um número quase infindável de outros mais. Angola e Moçambique trouxeram Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Pepetela, José Craveirinha, entre outros que não encontraram o protagonismo merecido. Em suma, uma versatilidade assinalável, permeada por diferentes momentos e movimentos literários e artísticos, caminhando pela poesia surreal e outra mais frugal, para além de representações tremendas em palcos vários espalhados pela geografia.
O cinema e a representação. A plenitude de novelas que, por mais reiterados conceitos, não deixam de ser um marco premiado fora de portas. Todavia, destaque para aquilo que o teatro deu, em forma de adaptações, encenações e dramaturgos. Uma oferta socialmente atenta e interveniente, contando com atores de proa a liderar as suas hostes. Vasco Santana, Nicolau Breyner, Fernanda Montengro, Eunice Muñoz, António Fagundes e muitos outros que figuram num lote de imortais por esses ecrãs e palcos fora. O cinema riquíssimo em abordagens diferentes e estudantes do meio em que incidem e que retratam. Manoel de Oliveira, o centenário cineasta, foi um dos que conseguiu essa proeza, tais como Fernando Meirelles, Paulo Rocha ou João César Monteiro.
A música ressoou de diferentes partes da lusofonia, mostrando-se em pulmões cheios ao mundo que as inspirou. Uma geração de intervencionistas, pontificada por Caetano Veloso, Zeca Afonso, Maria Bethânia, Gilberto Gil ou Sérgio Godinho, dando à letra uma mensagem cantada e vigorosa. A política foi sempre motor de criação, levando a que as grandes convicções saltassem para as vozes de grupos e à instrumentalização sentida e harmonizada das crenças emitidas. O fado, como património imaterial da humanidade, surge como uma das notas de destaque desta lusofonia que tem tanto por escrito como entoado. Da guitarra de Carlos Paredes à voz de Amália Rodrigues, que não se esqueçam aqueles que os ligaram de forma anónima ou menos mediática. Também Cesária Evora fez jus às suas origens e ecoou eternamente as suas raízes através de um estilo melódico sui generis. Não esquecer também a bossa nova, inspirada nas estrofes de Vinicius de Moraes e revivida pela voz de Tom Jobim ou de Elis Regina, e o samba, que a tantos motiva o passo de dança, assim como a capoeira.
A arte pintada e erguida também não passa incólume à afirmação da lusofonia, tendo os rostos sociais e contextuais pintados por Columbano Bordalo Pinheiro ou as mensagens visualmente aguerridas de Almada Negreiros repercussão continental. Também Soares dos Reis e a sua escultura fazem parte de património inesquecível para os mais interessados no desenvolvimento de uma cidade como propulsora cultural. Do outro lado do Atlântico, Oscar Niemeyer a dar estrutura às curvas que pareciam não ir para além do papel, ficando-se pelo sonho. No entanto, houve quem quisesse que a obra nascesse e Brasília veio ao de cima, não maculando qualquer ambição artística do centenário arquiteto. Siza Vieira e Souto Moura são outros nomes da arquitetura lusófona, dinamizando um urbanismo que se restringe a modelos tão estandardizados e globalizados. Desses edifícios erguidos aqui e ali, destacam-se os monumentos proliferados pelos diferentes microcosmos culturais de cada país, notabilizando as suas idiossincrasias. Uns barrocos, outros manuelinos, outros góticos e ainda outros baseados em meios ecológicos.
Chegará tamanha exemplificação para assegurar que a lusofonia é, por si só, uma linha que se destrinça das demais à luz da diversidade cultural? Para além de todas as preciosas descobertas que vamos fazendo diariamente, estes são motivos mais do que suficientes para não ser necessário uma constante importação de referências de fora. Argumentos mundialmente válidos e que asseguram a lusofonia como uma corrente milenar e que se encontra espalhada pelo mundo, mesmo pelas mais ínfimas e discretas comunidades sociais e religiosas. Temos de tudo um pouco. Para o mais interessado, basta procurar. Para aquele que defende a pátria ou a língua com unhas e dentes, tem argumentos suficientes nas composições de Chico Buarque ou nas rústicas máscaras feitas e personalizadas nas nações africanas. Porém, e na base, importa considerar que a cultura está em cada um de nós. Nos costumes, nos hábitos, nas tradições, nas crenças, nos interesses, nas tendências. Tudo o que importamos para o sujeito que somos constitui uma identidade cultural. De si e de todas as receitas inovadas por cá, sejam elas de cozinha ou na composição de alguém, nasce a lusofonia. Das pessoas e do seu passado, presente e futuro. A lusofonia está por aí. Tanto nos Sportings, nos Benficas e nos Portos como no humor criado cá, no plano de estudos inventariado para Guiné ou São Tomé ou numa conversa de ocasião com um desconhecido no idioma lusitano.
Um artigo não chega para fazer honras àquilo que a lusofonia é, nem por si só descrever e incluir tudo que esta contém. Por isso, fica um leve excerto em jeito de homenagem e de valorização daquilo que todos nós fazemos parte e que, por consequência, nos devemos sentir honrados. Desde a mais simples gramática até à mais suada prática democrática, é este o nosso legado. Pois que se apresente e se saboreie.