Um tributo a bell hooks: por uma revolução na educação
Hoje, foi noticiada a morte de bell hooks. Em 69 anos de vida, a professora, intelectual e ativista negra norte-americana deixou para trás um legado de luta contra sistemas de opressão — em particular, através de importantes obras de feminismo negro e de combate ao legado histórico da escravatura, que moldou até aos dias de hoje o seu país. No entanto, o seu trabalho vai muito além dos Estados Unidos. No triste dia da sua morte, a melhor forma de prestar tributo a hooks passa por relembrar algumas das suas ideias, e de como elas são essenciais para compreender a nossa realidade do outro lado do Atlântico. Por essa razão, vou partir de um exemplo que nos tocou a todos — o ensino da História nas escolas.
No meu 8.º ano de escolaridade, eu, e tantos outros pelo país fora, estudámos a expansão marítima portuguesa, com todos seus contornos imperialistas. No nosso manual escolar de História de Portugal, pudemos ler as seguintes palavras: depois de os portugueses terem tentado utilizar os índios para trabalho escravo, verificaram que estes não se adaptavam, o que tornou necessário recorrer aos escravos africanos. A violência desta frase é autoexplicativa, e comum nos variados manuais escolares da disciplina; a escravatura foi ensinada a uma geração inteira de portugueses como a simples circulação de produtos, através de uma narrativa de objetificação e desumanização de milhões de africanos escravizados.
Quando uma criança (ou adolescente) de 13 anos enfrenta esta narrativa, não é fácil contestá-la: estes eram factos depositados na sala de aula, nunca passíveis de serem questionados por qualquer aluno. Estávamos a enfrentar o chamado “modelo bancário” de educação. Nas palavras de bell hooks — influenciada pelo pedagogo Paulo Freire —, esta era “a abordagem ao ensino baseada na noção de que todos os estudantes devem limitar-se a consumir a informação cedida pelos professores.” O nosso potencial para pensamento crítico era automaticamente minado por uma ilusão de uma figura de autoridade objetiva e imparcial — o professor.
O modelo bancário de educação é problemático porque (entre outras questões) acentua sistemas de dominação colonial através de uma aparente neutralidade de quem profere os factos. Tudo o que é dito na sala de aula é incontestável. De forma a confrontar este modelo conservador e limitativo, bell hooks apresentou um método de educação alternativo — a chamada engaged pedagogy (“pedagogia ativa”). Segundo este modelo, um sistema de educação deve ter em conta a realidade social de cada estudante na sala de aula, com “consciência de raça, género e classe.” Através de um foco no bem-estar de cada aluno e de uma educação “progressista e holística”, o professor deixará de ser uma figura distante e austera. No entanto, este não é um processo fácil, uma vez que exige que o pedagogo esteja num constante processo de “auto-atualização.” O bom professor estará sempre à procura de novas formas de colocar os seus estudantes à vontade na sala de aula, incentivando o seu pensamento crítico. Uma vez bem-sucedido, os estudantes deixam de sentir que estão a ser apenas confrontados com factos objetivos, mas sim com narrativas que podem — e devem — ser questionadas e desconstruídas.
Assim, a pedagogia ativa de bell hooks está intimamente ligada à ideia de descolonização da História. Confrontar o modelo bancário de educação, dos “factos despejados na sala de aula”, foi um dos grandes contributos da autora – e continua a ser essencial para desconstruir narrativas coloniais, dentro e fora dos manuais escolares de História de Portugal. Como afirmava a sociologista Cristina Roldão à Revista Visão, “a maneira como se representava África [nas aulas de História] deixava-me desconfortável, porque o pressuposto era que aquela aula estava a ser dada para portugueses brancos, aquilo era a história deles, não era a minha; eu estava do outro lado.” Um sistema de educação ativa, inspirado em bell hooks, nunca permitiria tal coisa, uma vez que o seu foco está no sentimento de inclusão e bem-estar de todos os alunos — não apenas de alguns.
bell hooks defendia que a educação era a “prática da liberdade” porque via a sala de aula como um “local de possibilidades” — mas apenas se este for um espaço de diálogo, no qual tanto o estudante como o professor se encontram numa relação de mútuo respeito. A autoridade do pedagogo nunca é utilizada como uma desculpa para evitar perguntas desconfortáveis, para se colocar num pedestal inacessível. Ao reconhecer todos os estudantes como sujeitos, e não objetos, o professor progressista irá, nas palavras de hooks, “correr o risco necessário da pedagogia ativa, e tornar a sala de aula num local de resistência.” Neste local de resistência, não só irão emergir novas narrativas, como todos os estudantes poderão pensar criticamente sobre si próprios, a sua identidade, e as suas circunstâncias políticas.
A obra que hooks nos deixa não se resume, de maneira nenhuma, ao seu contributo sobre educação na sala de aula. As suas obras sobre feminismo negro são essenciais para compreender o seu pensamento, e os dois temas estão diretamente ligados. Todos aqueles que nunca sentiram que a sua sala de aula fosse um espaço para diálogo, um espaço inclusivo, no qual o objetivo é aprender a questionar e não apenas ouvir monólogos proferidos por uma alegada figura de autoridade, encontrarão na obra Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom (1994) importantes respostas. Em Portugal, a grande obra Não serei eu mulher? (1981) encontra-se traduzida pela editora Orfeu Negro, no qual a autora reflete criticamente sobre a exclusão das mulheres negras nos movimentos feministas desde o século XIX até aos anos 70. Entre tantas outras, é impossível enumerar todas as obras que hooks nos deixou. Aos que ficam deste lado, resta-nos aprender com a intelectual, e pôr em prática o que nos ensinou ao longo das últimas décadas.