A pedagogia crítica de Paulo Freire

por Lucas Brandão,    12 Junho, 2019
A pedagogia crítica de Paulo Freire
Paulo Freire / Fotografia de Paulo Granchi Sobrinho/Estadão
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Se a pedagogia brasileira deve muito a alguém, esse alguém é Paulo Freire. Nascido no estado do Recife, influenciou aquilo que se conhece por pedagogia crítica, que instrumentalizou a educação brasileira. A relação que o educando estabelece entre o objeto e a realidade em que se encontra procurava opor-se à visão mecanicista, estatística e quantitativa que formatava os métodos de ensino então. Visava, assim, criar um rumo individualizado e crítico, fundamentado nas comunidades e na sua dimensão popular, voltando-se para uma atitude proativa social e até política. É por este pendor mais próximo do povo e das comunidades locais que é rotulado como intelectual de esquerda e até marxista, predicados que, embora não sendo refutados, restringem a sua influência. Esta comprova-se pelas mais de três dezenas de doutoramentos Honoris Causa que recebeu, para além de várias condecorações provenientes da UNESCO, reconhecendo os préstimos teóricos e práticos de Freire no processo educativo. 

Paulo Reglus Neves Freire nasceu a 19 de setembro de 1921, tendo falecido 76 anos depois, a 2 de maio de 1997. Natural do Recife, no estado do Pernambuco, era filho de um capitão da Polícia Militar e tinha três irmãos, sendo que dois deles, Armando e Temístocles, abdicaram dos estudos para trabalhar em prol do seu irmão mais novo, Paulo. Tudo para que ele se mantivesse nos estudos. A família era, assim, da classe média, embora sentisse as agruras da fome e da pobreza provenientes da crise da Bolsa de 1929, que assolou os Estados Unidos e os demais países. Foi este o despoletar de um pensamento mais crítico em relação à educação e à importância da alfabetização dos mais pobres. Desenvolveu, desde logo, a sua escrita e procurou conviver com os teóricos de então, não só presencialmente, mas com as suas obras, tendo em vista a construção de um método revolucionário, que não descurasse, precisamente, os mais desfavorecidos. Foi assim que começou a granjear as atenções à esquerda, que não só incluiu os pedagogos, mas parte dos ideólogos e militantes políticos.  

Paulo Freire

Foi com esta mentalidade que se dirigiu para a faculdade, ingressando na Universidade do Recife para a sua Faculdade de Direito. No entanto, preferiu ser professor e lecionar o Português numa turma do segundo ano. Um ano depois de entrar na universidade, no ano de 1944, casou-se com uma colega, de seu nome Elza Maia Costa de Oliveira, com quem esteve até 1986, ano da morte desta. A sua vida matrimonial só voltaria a ter mexidas quando se casou, em 1988, com Ana Maria Araújo, a sua “Nita”, que conhecia desde a infância e que tinha sido sua orientada na Universidade Católica de São Paulo. Continuando o seu percurso académico do tempo da sua formação em Direito, tornou-se, em 1946, diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social em Pernambuco, procurando efetivar a sua presença entre os mais pobres, cuja maioria era analfabeta. 

Continuando este trabalho até aos anos 60, dirigiu o Departamento de Extensões Culturais, resultante do seu trabalho com o desafio da alfabetização popular. Em 1961, fez a experiência que resultou no célebre “Método Paulo Freire”, sendo uma proposta aplicada à alfabetização dos nativos de Angicos, no Rio Grande do Norte. Contando com vários colegas ao seu lado, foi responsável pela formação de 300 cortadores de cana-de-açúcar em mês e meio, procurando distanciar-se da habitual cartilha, que fomentava o ensino pela repetição de palavras isoladas e de frases pré-definidas. Foram quarenta horas de aulas nas quais se procurou estabelecer uma proximidade entre os formadores e aquilo que dizia mais à comunidade, colocando essas noções em ligação com o resto do mundo e, no seu momento-chave, levando a que se tornassem críticos e questionadores desse mundo.

O sucesso conduziu a que o presidente do país de então, João Goulart, aprovasse essas experiências num Plano Nacional de Alfabetização, com o objetivo de formar educadores e de fundar vários núcleos pelo país. No entanto, ainda em 1964, foi deposto o governo em prol da Ditadura Militar, que levou à prisão de Paulo Freire. Após ser libertado, exilou-se na Bolívia e no Chile, onde colaborou com a ONU na pasta da agricultura e da alimentação. Neste período, redigiu o seu primeiro livro, sendo ele “Educação como Prática da Liberdade”, baseando-se numa tese que havia feito no percurso universitário. 

Após regressar, no longínquo ano de 1979, envolveu-se na política, integrando o Partido dos Trabalhadores e chefiando algumas das suas fundações. Entretanto, tornou-se secretário da Educação na Prefeitura de São Paulo, permitindo-o supervisionar a alfabetização dos adultos. Foi o que procurou fazer até aos finais dos anos 90, culminando na criação do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, que procurou prover a educação básica ao máximo de pessoas possíveis, usando os espaços à sua disposição. Tornou-se numa referência permanente para as estruturas formativas do Brasil, que fomentaram o Instituto Paulo Freire, responsável por alimentar o seu legado e por conservar o seu espólio arquivístico. Um ataque cardíaco não susteria a força que foi alimentando a um alcance internacional, e que o seu Instituto não deixou esmorecer.  

Quando o homem compreende a sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções. Assim, pode transformá-la e o seu trabalho pode criar um mundo próprio, seu Eu e as suas circunstâncias.

A educação que procurou prover aos seus conterrâneos inspirou-se na integração das comunidades e das suas gerações, que as convidasse a participar no pensamento e na atuação do mundo que, afinal, também era deles. Para isso, contou com o contributo de uma série de testemunhos, que começavam em Platão e acabavam nas correntes marxistas e pós-coloniais contemporâneas. “Pedagogia do Oprimido” (1970) seria a obra que melhor conseguiria captar a essência do seu discurso pedagógico, assente na tríade professor-estudante-sociedade. Dialogando com a dialética hegeliana senhor-escravo, aplica-a ao contexto colonial, que satura e silencia a potencialidade educativa dessas comunidades populares. O oprimido, perante o opressor, deve aceitar a educação como meio de recuperar o seu sentido de humanidade, visando o objetivo final de se emancipar da condição à qual se subjugou.

É um comprometimento com o exercício de uma constante posição crítica em relação ao mundo que é o alimento desta pedagogia, atuante na sociedade por intermédio da educação. O livro só seria publicado no seu país em 1974, numa altura em que, com a presidência do general Ernesto Geisel, o país se abriria mais a outras vozes. A de Freire, contudo, já havia corrido Cambridge, Genebra, onde tinha sido consultor do Conselho Mundial de Igrejas, e até a Guiné-Bissau e Moçambique. Esta proximidade de Freire à igreja sentia-se por via do objetivo de apoiar os mais desfavorecidos, com o brasileiro a prestar o seu contributo com a sua pedagogia, numa convergência mais sentida com o socialismo cristão. 

A educação procurava manter-se consciente do seu compromisso político, sintonizado com a autonomia que se queria para cada um dos aprendizes. Seria um exercício de metamorfose humana que a pedagogia praticava pôr em prática, num diálogo ativo entre a consciência do indivíduo e o seu mundo. Eram os fenómenos conscientes e sociais que aproximavam a pedagogia de Freire ao existencialismo e à fenomenologia, sendo a educação um ente ativo na prática da liberdade e da tomada de consciência, que procura, desde sempre, permanecer fiel ao seu aspeto humano. Esta era uma postura arrojada, que contrastava com a quantificação educacional que o brasileiro criticava, classificando-o como “modelo bancário”. O aluno seria uma conta que o professor teria de preencher, assumindo-se a relação de emissor-recetor, delimitada e restritiva do potencial criativo dos mais jovens. Isto geraria, em suma, uma cultura do silêncio, sustentada pela supressão da opinião e do pensamento crítico e que geraria a dominação social mais ou menos explícita. A pedagogia crítica queria, por isso, remar contra esta maré, contra os pretextos das culturas dominantes, alicerçadas nas supostas supremacias de raça e de classe social. 

Os temas e as propostas apresentadas por Paulo Freire conseguiram despertar vários olhares e outras tantas correntes de pensamento, alimentando as universidades norte-americanas, mas também movimentos sociais, como na África do Sul. Os valores de uma igualdade diferenciada, em que as diferenças de cada um assumem o mesmo protagonismo, num diálogo importado com a prática quotidiana da sociedade. É nesse percurso que se incentiva a construção de reflexões, em que o educador funciona como elo motivacional e mediador, apresentando uma plataforma de partilha de saberes e de mundividências e fazendo dela um eixo identitário daquela comunidade popular.

Está inerente à atuação do educador preparar as classes populares para a produção e comunicação daquilo que é a sua bagagem teórica e prática, recolhendo as suas histórias e memórias num processo de formação contínua e mútua. A importância da inclusão do cidadão torna-se pertinente perante os desafios impostos pelo passado, pelo presente e pelas perspetivas futuras daquilo que serão os organismos políticos e sociais; e daí advém a relevância, a seu ver, de preparar o educando para o exercício político. A educação, que se quer respeitadora e libertadora, permite o conhecer da consciência, para a subsequente atuação perante a possível opressão, assumindo atitudes que fazem da sociedade mais numerosa e preparada para as eventuais problemáticas. 

É este discurso que firma e afirma Paulo Freire como um nome crucial na pedagogia, especialmente no seu ramo crítico. Assumindo o educador com um papel de charneira, o aluno torna-se num agente de transformação social, sendo a educação popular o percurso a seguir rumo a esse combate perante os mecanismos de opressão ruidosa e silenciosa. Não obstante as ligações políticas subjacentes, acabou por influenciar substancialmente aqueles que procuravam encontrar alternativas aos métodos e meios de ensino vigentes; e prestar um serviço à responsabilidade de formar em prol do conformar. 

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.

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