Uma crónica de gelo e fogo
Foi com alguma melancolia que vi pela última vez o genérico de “Game of Thrones”, imerso na expectativa ébria de saber que ao atravessar essa maravilhosa cortina ia encontrar algo novo, emocionante, surpreendente. Essa ebriedade acabou. Posso olhar para esse veludo ondulante quantas vezes quiser, mas atrás dele nunca mais se esconderão novas aventuras em Westeros.
No entanto, há um travo um pouco mais amargo nessa melancolia e não é só por ter acabado. Eu gosto de conclusões. Gosto de um círculo bem delineado e encerrado. Um término com chave de ouro, como se costuma dizer. GOT merecia uma chave forjada com mais quilates.
Comecei a ver a série no Verão de 2013. Era um fim-de-semana chuvoso de Junho em Viseu. A claridade da manhã de Sábado entrava suave pela janela, difusa pela água que escorria pelo vidro. Tinha posto o LCD grande no quarto, juntamente com um disco externo com três temporadas de “Game of Thrones” na resolução máxima que tinha conseguido encontrar. Enchi um tabuleiro com coisas que fazem mal mas sabem bem. E na companhia da namorada, atravessei a cortina pela primeira vez. Voltámos a atravessá-la 29 vezes, de forma quase compulsiva. Foi um fim-de-semana inteiro a devorar três temporadas. Não estava cansado após a maratona, apenas deliciado. E ansioso. O Verão não conta, pois passa sempre rápido, mas sabia que tinha pela frente um longo Inverno e meia Primavera antes de poder voltar a poder acariciar essa cortina aveludada.
Tinha-me apaixonado à primeira vista pela série. Mas não foi uma paixão superficial. Não foi apenas o aspeto que me encantou, nem apenas o interior. Foi tudo. “The whole package” como dizem do outro lado do Atlântico. Seis anos volvidos, a paixão não esmoreceu. Mas instalou-se a melancolia.
É fácil constatar porque “Game of Thrones” atingiu os patamares que alcançou. Não é por ser uma moda. Todas as modas sucumbem ao axioma de Warhol. Esta série dificilmente será esquecida. E isso deve-se ao facto de ser uma produção imaculada a todos os níveis. Todos, sem excepção. Especialmente o mais fulcral: Qualidade narrativa e desenvolvimento de personagens. Foram sempre exímios nisso e esse foi um dos principais motivos pelos quais tanta gente se sentiu cativada pela série, desde o início. Esse feito foi alcançado devido ao ritmo, ao crescendo (ou build-up como dizem os americanos) narrativo magistral que se foi construindo. Houve sempre imensa construção, imensos degraus a subir antes de cada “abalo narrativo”.
Nesta última temporada, isso não se verificou e os abalos foram sentidos de forma mais superficial. Tudo é muito rápido. Demasiado rápido. Para manter os padrões anteriores, em vez de oito, eram necessárias, no mínimo, 10 temporadas completas. Preferencialmente 12, segundo o autor dos livros, George RR Martin. Também ele confessou sentir-se assim. Melancólico.
“Sabes, é complexo. Estou um pouco triste, na verdade. Gostava que eles fizessem mais algumas temporadas. Mas eu percebo. Dave e Dan (produtores da série) vão fazer outras coisas e tenho a certeza de que alguns atores assinaram um contrato de oito anos e que gostavam de ir desempenhar outras personagens. Tudo isto é justo. Não estou chateado, nem nada do género, mas há um pouco de melancolia em mim”, afirmou o escritor.
Eu sinto a mesma coisa. E acredito que o sentimento é partilhado pela HBO e pela esmagadora maioria do elenco e equipa de produção. Mas os senhores David Benioff e D.B. Weiss é que são os showrunners, a palavra é deles. E nas reuniões com o canal a palavra foi: “Basta”!
Essas cinco letras surpreenderam muita gente. A série tem uma média de 9.3 milhões de espectadores por episódio e estima-se que renda um bilião de dólares por ano, segundo o The New York Times. Porquê sacrificar a galinha dos ovos de ouro? O recente anúncio que o duo ia tomar conta da Franchise “Star Wars” derrama alguma luz sobre esse estranho sacrifício. O assédio do George Lucas não deve ser propriamente recente. E talvez seja ainda mais reluzente.
No entanto, não é por isto que “Game of Thrones” deixa de ser uma série brilhante. E discordo completamente do apedrejamento que imensos fãs estão a fazer. Houve momentos magistrais nas últimas duas temporadas. O episódio “The Spoils of War” é épico. “A Knight of the Seven Kingdoms” é um deleite narrativo. “The Long Night” é prodigioso na realização e na audácia da direção de fotografia, cuja opção estética também causou polémica mas que eu acho que, semanticamente, se adequa ao rumor sombrio da “Noite Longa” que ecoava no vento de Westeros desde a primeira temporada.
Resumindo, é-me impossível deixar de gostar da série por causa da aceleração do ritmo narrativo. O todo, tal como Casterly Rock, é demasiado colossal e robusto para ser beliscado por uma das partes. Sei porque razão a aceleração acontece. Compreendo porque acontece. Simplesmente, entristece-me que aconteça. É impossível sacudir a sensação que podia ser ainda melhor.
Resta-me a esperança que em blu-ray saia uma versão director’s cut com mais minutos. Nunca irá compensar a falta de uma ou duas temporadas inteiras, mas ao menos que acrescente um pouco mais.
E venha essa prequela, a explorar o vasto passado de todo este mundo. Já sei que não vai ser escrita pelo punho do George RR Martin mas, já que vão contar com a sua orientação, ao menos que estimem bem a opinião dele nas contendas criativas. Que tenham sempre em mente que nessa arena, ele é o melhor espadachim dos Sete Reinos.
Epilogo: Daenerys Targaryen (spoilers)
No penúltimo episódio, Daenerys Targaryen, ignora a rendição de Kings Landing e destrói a cidade. Muita gente sentiu-se incomodada com essa opção narrativa. “Incoerente”, “inverosímil”, “incongruente” foram algumas das expressões mais usadas.
A mim não me incomodou. Especialmente porque há uma palavra ainda mais forte, que consegue subjugar essas três: Circunstâncias.
A ação/reação da personagem Daenerys é nitidamente circunstancial. Houve vários fatores que contribuíram para isso e que nos foram induzidos ao longo desta temporada.
Há um velho ditado índio que diz: “Todos nós temos dois lobos dentro de nós, um dócil e um feroz e selvagem. E somos nós que decidimos qual deles é que alimentamos”. Por vezes são as circunstâncias a decidir essa alimentação. No caso dela, acho que foi um acumular de circunstâncias aliadas ao temperamento efervescente e impulsivo que caracteriza a maioria da família Targaryen, especialmente nos casos de consanguinidade que, por acaso, não é o caso do Jon Snow aka Aegon Targaryen.
É preciso ter em conta alguns pormenores. O conflito emocional com o Jon e com a verdade que ele carrega nos ombros. A morte do seu braço direito e mais fiel defensor, Sir Jorah. A execução da amiga Missandei à sua frente. A traição do conselheiro Varys. A perda de mais um dos seus filhos alados. E todo o dilema que ela tem enfrentado ao longo da sua jornada, de querer libertar povos que, por vezes, não se deixam libertar.
Vamos juntar todas essas peças. E juntá-las ao facto de Daenerys, desde que chegou a Westeros, ter carregado o peso da sua arqui-inimiga Cercei considerá-la fraca e até incapaz de governar por ser misericordiosa. E em todos os confrontos que ela enveredou desde que chegou a esse continente que teve de engolir a possibilidade amarga da Cercei poder ter razão, mesmo que lutasse contra acreditar nisso.
Perdeu um dos dragões por querer resgatar o Jon além da muralha. Perdeu quase todo o exército por aceitar ser convencida a participar numa guerra que não estava nos seus planos, em vez de conquistar de imediato Kings Landing, como tinha delineado, sem transpirar uma única gota de suor. E do outro lado, alguém que se ia tornando cada vez mais poderosa por rejeitar esses sentimentos, como a lealdade, a hombridade, a misericórdia.
Parte da Daenerys devia querer continuar a ser fiel ao que sempre defendera. Mas outra parte, face às circunstâncias, face a ver a magnífica fortaleza que fora erguida bloco a bloco pela sua família e lhe tinha sido retirada, ao imaginar a Cersei lá, a olhar para ela e a pensar: “Os sinos estão a tocar, já sabes o que isso significa minha menina; enchi a cidade de pessoas inocentes para poder usar a tua fraqueza contra ti, agora resta-te ser fraca”. E com tudo isso a fervilhar lá dentro, ela decidiu mostrar à Cercei, no alto daquela fortaleza formidável, entre as colunas de mármore ornamentado da varanda, no poleiro do poder, que ela estava enganada.
Devia ter mostrado é que a misericórdia não era uma fraqueza. Em vez disso, decidiu mostrar que ela conseguia não ser misericordiosa. Conseguia “ser forte”. Acima de tudo, conseguia ser o contrário do que a arqui-inimiga estava a contar que ela fosse.
Por vezes custa-nos que as personagens que gostamos nos nossos livros, peças de teatro, filmes ou séries não sigam o caminho que queríamos que elas seguissem. Esquecemos-nos que elas têm vida própria. É assim com as personagens. É assim com as pessoas.
Nessa dança entre seres de carne e osso e redigidos na brancura do guião, há abraços que se prolongam e sentimentos que se confundem.
Nos momentos pós-destruição, com as cinzas a assentarem nos destroços da outrora mais bela cidade dos Sete Reinos, a incredibilidade que os personagens mais próximos de Daenerys sentem é idêntica à nossa. É como se estivéssemos no mesmo barco, ao longo da tormenta. Quando ela emerge desse oceano de águas revoltosas, é uma pessoa diferente aos olhos de todos. Está e estará para sempre algemada às suas ações, sejam elas impulsivas ou não. Ao seu livre arbítrio, seja ele tingido de sangue ou não.
Numa entrevista recente ao LA Times, a atriz Emilia Clarke disse que interpretou Daenerys nos últimos dois episódios como se ela fosse uma viciada. Parece estranho dito assim, de forma solta, eu sei. Mas se ouvirmos a explicação, talvez a estranheza se dissipe: “Imaginem um alcoólico que está sentado no balcão de um bar, após anos de abstinência, com uma garrafa de whiskey à frente. Ele pensa, ‘eu sei que isto é errado, sei que isto vai magoar muita gente que confiou em mim, sei que vai doer. Mas tenho de o fazer. E enche o copo e bebe’. O que os faz dar esse passo? Talvez uma vida de dor, mágoa, miséria, desapontamento, desgosto e o pensamento que ela nunca é boa o suficiente. Boa o suficiente para o amor. Boa o suficiente para obter o trono que se tornou o seu desígnio de vida”.
O “vício” que ela manifesta em continuar a semear “guerra e libertação”, misturando ambos os conceitos como se fossem indissociáveis, talvez venha daí. Uma forma de autojustificar o rumo que decidiu dar ao seu reinado. “Se eu olho para trás, estou perdida”, disse, mais do que uma vez. Depois da impulsividade, não há volta atrás. Mesmo que nem todos concordem com o caminho em frente. Jon não concordava. Tentou confrontá-la com isso e, dessa confrontação, fez algo que acreditava ser um sacrifício em nome de um bem maior. Também houve impulsividade no seu ato. Ele argumentou e suplicou. Só quando leu a inflexibilidade nos olhos dela é que desembainhou o punhal. E passou a viver assombrado pela dúvida. “Terei feito bem?”. Também ele deu um passo impossível de recuar.
Daenerys, “nascida na tempestade”, morreu após a tempestade que criou. A bonança não trouxe céu azul nem sol. Apenas melancolia, enublada, escura, quase lúgubre. Não sei quanto tempo ela perdurará. Mas sei que todo este desfecho seria bem digerido por todos se subsistisse a cadência narrativa que sempre acompanhou a série. Tudo isto seria bem sustentado, como aconteceu com todos os momentos improváveis, surpreendentes, perturbantes ao longo das temporadas.
Talvez esta dívida de tempo seja saldada nas páginas de um velho escritor de cabelos e barba grisalhos. Durante oito anos, esta série teve o condão de pintar de um sublime dourado o dia mais odiado da semana. Talvez a tinta não se tenha esgotado, apenas mudado de lata. Nyke jāhor umbagon.
Este texto foi originalmente publicado no Crónicas da Madrugada