Uma viagem pelo Texas, um “aftertaste” do SXSW e um bloco de notas de olhos postos nos nossos festivais de verão
Haverá sensação que nos traga mais vida que a novidade?
A primeira vez que visitamos um sítio novo onde nos sentimos em casa é como ouvir pela primeira vez uma canção que nos arrepiou da cabeça aos pés, sem sabermos porquê. (O óbvio também precisa de ser dito).
Este é o ano em que a cultura volta a sair à rua como deve ser. Não vai sair de máscara com medo de bebericar a sua cerveja e vai pela primeira vez activar as notificações dos grupos de whatsapp para estar mais presente que nunca. Este ano a cultura e a música voltam a sair à rua no seu melhor e nós, assim vamos também, mais desabituados de multidões, mas voltamos a passar o verão juntos.
Viajei para o SXSW (abreviatura de South By Southwest), o festival em Austin, no Texas, que dá palco à música, ao cinema e à tecnologia e que em 2019 reuniu mais de 280 mil pessoas, desde então esteve a guardar-se para este ano. O evento que viu nomes como Amy Winehouse tocar debaixo de uma árvore em 2007 e que lhe abriu várias portas para o mundo. Um festival a céu aberto com palcos espalhados pela cidade, que inspirou o nosso Super Bock em Stock.
O que sabia? Que ia para um festival de música nova, de bandas e nomes que teria de ouvir primeiro, coisa que já faço na minha pequena página de instagram, a Bonus Track, mas desta vez para fazer o meu próprio horário. Mas no meio de tantas perguntas e planeamento, a minha cabeça faz o favor de desorganizar todas as imagens e imaginar-me com botas de cowboy a experimentar uma cerveja texana. No fundo, imagino-me sempre a ser surpreendida, fora de planos. E já lá chego.
Onde é que eu ia… Centenas de artistas a preparar o seu showcase, tantos nomes que mais vale aceitar que é impossível ver todos os que nos agradam. A parte interessante do formato é que na app do festival, assim que marcamos alguém como favorito, vemos que toca duas ou três vezes em dias e palcos diferentes e assim temos mais oportunidades. Feito o itinerário, seguimos para o nosso destino.
LIS-ERW-AUS
Aterro com uma garrafa de água daquelas amolgadas depois de voar onze horas e uma mala de porão, ao som da “Texas Sun” de Khruangbin sem saber que ia ser a banda sonora desta minha semana (podia ser qualquer outra, na verdade, mas não só pelo título como pela própria música, depois percebi que captaram bem a essência daquele sol e daquela luz numa única faixa). Éramos onze e chegámos ao hotel com uma sede do que aí vinha, prontos para dar uma caminhada, e assim foi.
Passear pelas ruas de Austin em pleno festival fez-me sentir uma criança num parque de diversões. Uma noite quente, a comparar com as últimas de Portugal, uns ténis prontos para o que der e vier enquanto os meus olhos reflectiam os neóns de todos os restaurantes e bares nas ruas cheias de movimento. Cheirava a molho barbecue em todo o lado como se, para eles, fosse normal e havia música que vinha de mais sítios que aqueles que eu conseguia ver. Muita gente se passeava com um estilo descomprometido e um ar leve. O festival tinha começado há uns dias mas para os ouvidos, o melhor estava para vir.
Depois de uma breve caminhada por uma das ruas principais e de um bom jantar, seguiu-se uma boa noite de sono. E eu não estava preparada para o que aí vinha.
Um dia no SXSW e o que ouvir
De manhã, o festival é perfeito para agarrar num café americano e num croissante assistir a conferências num pavilhão que faz lembrar a nossa FIL, com exposições, talks e showcases mais intimistas. As talks mais concorridas falaram no futuro da música e na forma como esta pode vir/vai ser consumida: na importância do multiplicar das plataformas e no enriquecer de cada catálogo; na febre dos NFTs, um dos principais tópicos do festival e quem sabe do futuro, dando o exemplo da Dolly Parton que com 76 anos lançou os primeiros NFTs no festival com edições limitadas da sua música.
Posto o cérebro a trabalhar, um concerto já podia aparecer entre o almoço e logo depois havia que escolher o melhor sítio para se passar a primeira parte da tarde. As opções corriam de boca em boca e as activações de marca são muito apelativas no SXSW, tendo em conta as dimensões do festival. Cada uma delas pode ser um palco e receber concertos inéditos, como foi o caso da Dra. Martens onde vi BlackStarKids, miúdos cheios de energia e a começar, e na falta que fez a festa da Fader em conjunto com outras marcas, a Fader Fourth, que em 2016 recebeu o Drake, por exemplo.
A maior parte dos dias foram de sol e muito calor, o que fez com que as tardes e os concertos ganhassem as cores certas para explorar todo o recinto, mas nada como fazê-lo à noite, à procura dos maiores concertos.
Os showcases eram curtos e intensos, o suficiente para se conhecer o artista e o que tem de melhor e ir a seguir para outro palco. Aqui, quebrar o movimento é algo que não queremos nem nos apetece, a energia transparente do ar faz-nos querer viver tudo.
Como melhores showcases que vi destaco uma banda inglesa com o pacote completo para um bom concerto e uma boa carreira, os Buzzard Buzzard Buzzard, um vocalista com sentido de humor e alcance vocal do outro mundo, agudos de Freddy Mercury e talvez alguma influência e uma banda com vários singles desde 2019 e apenas um álbum lançado este ano. Tocam canções cheias de ritmo que ficam no ouvido e muito bem interpretadas ao vivo. Têm, principalmente, a energia certa, da banda como um só. A ouvir pela primeira vez, podemos começar pela “John Lennon is my Jesus Christ”.
Continuando pelas bandas, ainda no pódio, temos WH Lung, pela teatralidade do vocalista, melodias potentes e a capacidade de se envolver no meio do público, para onde ele tanto nos ia fazer dançar. Esta banda viaja de Manchester para o M.Ou.Co, no Porto, dia 21 de Maio. Gostei deles ao ponto de ver mais uma vez, tal como fiz com LOS BITCHOS. E aproveito para deixar aqui anotada a quantidade de mulheres em palco que vi numa semana: vocalistas, baixistas, nas teclas… Ou como no caso de Wet Leg em que são protagonistas, ou no caso de LOS BITCHOS, todas elas mulheres. Para quem se deixa levar por bandas de instrumentais como eu, LOS BITCHOS, para além da energia electrizante, das franjas à anos 60/70, este concerto parece um espectáculo acidental no meio de um grupo de amigas que passam A energia feminina estupenda que inspira qualquer pessoa. Tocam que se fartam. Vão estar no Super Bock Super Rock, no Meco, este ano, dia 14 de Julho.
Já no que toca a vozes suaves e que pouco precisam para as acompanhar, Max Pope cantou e encantou na guitarra e agradeceu o facto de deixar de tocar só no próprio quarto em Londres e de estar ali no meio dos Estados Unidos. Ainda Joesef, que nos presenteou, à noite, com um dos melhores timbres do festival, tal como CMAT que marcou a diferença pela alma toda que deposita nas letras.
Já mais electrónicos, os Working Men’s Club foram os que mais energia puxaram e dancei como não dançava há muito tempo, o que me fez decorar este nome e felizmente podemos vê-los no Super Bock Super Rock, dia 14 de Julho, mesmo dia de LOS BITCHOS.
Não consegui apanhar concertos de Xavier Omär, Branson Anderson, Bénet e Advertisement mas, como disse, num cartaz tão vasto, era impossível.
Percebi, em breves peoplewatchings pelo público que muitos trabalhavam na indústria, o que faz os bilhetes mais caros. No fundo, o preço alto está na oportunidade de criar contactos e presenciar os primeiros momentos de alguns nomes na primeira fila, visto que cada concerto tem relativamente poucas pessoas, à excepção de nomes mais estratosféricos.
O facto de não ser um festival tão acessível, nem no que respeita ao bilhete ou à longa viagem, torna esta semana ainda mais especial.
Tive, no entanto, a certeza de que quero voltar.
Malas e bagagens
Deixo Austin com memórias maravilhosas não só dos concertos como da parte mais antiga da cidade onde os palcos são outros, a música é country e a imagem é exactamente a que tínhamos do Texas e a que previ fora de planos: botas bicudas de pele, chapéus e um filme de cowboys lá ao fundo num ecrã. Ah, e uma Lone Star, cerveja obrigatória.
Consegui trazer umas botas da loja mais icónica e tradicional e como sou ribatejana mal posso esperar por as poder usar fora de contexto, em Lisboa.
Fora todas as imagens que tornam esta viagem diferente de qualquer outra, e sublinho que todas as minhas notas têm como base aquilo que vi e ouvi, deixo também aqui escrito com cada vez mais certeza, que o melhor concerto vai fazer-se sempre pela companhia. E são mesmo esses os momentos de que nos vamos lembrar daqui a uns anos, quando contarmos aos nossos netos que fomos malucos.
Por isso: obrigada ao Luís porque sem ele esta viagem não tinha existido e obrigada à Paula, à Kika, à Paola, ao Gaspar, ao Zeca, ao Tiago, ao Marco, à Graça e ao Guilherme por elevarem esta experiência a níveis alucinantes de conhecimento, de capacidade de estarem tão presentes no presente e por terem também pernas prontas a caminhar 18km num dia, durante uma semana. O corpo é constantemente um fenómeno em constante descoberta, tal como o grupo de amigos com quem caminhamos e de quem nunca, passe o tempo que passar, nos desabituamos verdadeiramente. E covid? Nunca mais ouvi falar nele.
“O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.”
Eduardo Galeano
Obrigada também a quem acabou de viajar nestas pequenas notas, que eu já tinha saudades de escrever e achei esta viagem boa demais para não ficar escrita, não só para quem gosta de música, como para quem viaja facilmente, até mesmo não saindo do mesmo sítio.
Vemo-nos por aí.