“Undine”, de Christian Petzold: a desconstrução mitológica de Berlim
O novo filme de Christian Petzold integra a Competição do Lisbon & Sintra Film Festival 2020, que decorre neste momento. A totalidade da obra do realizador alemão, alvo de retrospetiva na última edição do LEFFEST, revela uma singular capacidade de fundir a vida dos seus personagens com a história da sociedade germânica. No seu novo projeto, Petzold opta por uma abordagem mais fabular que o habitual, onde os símbolos abundam, sem nunca se fecharem em interpretações óbvias ou estanques.
Undine, título do filme e nome da protagonista (soberba Paula Beer), é uma figura mitológica de tradição europeia, ninfa aquática que se torna humana quando se apaixona por um homem, estando destinada a morrer se este lhe for infiel. Várias escolhas dramáticas do cineasta são livremente baseadas neste mito, responsável pelas oscilações da narrativa entre o realismo e a fábula.
O filme inicia na esplanada de um café, junto ao Departamento de Desenvolvimento Urbanístico de Berlim, onde a protagonista é historiadora. Aí, vemos Johannes (Jacob Matschenz) terminar a relação amorosa com Undine. Inconformada, dirige-se ao seu local de trabalho, onde palestra sobre a arquitetura pré e pós queda do muro de Berlim. No final, regressa ao café, na expectativa de ainda encontrar Johannes, mas tropeça antes em Christoph (Franz Rogowski). O encontro é enquadrado por um aquário, cuja acidental quebra provoca a queda dos personagens e concretiza o ritual de amor à primeira vista.
Estes primeiros minutos sintetizam pragmaticamente a nova obra de Petzold. O passado e o presente das relações e da arquitetura da cidade, a introdução dos mitos e símbolos, a água como elemento central e o tom melodramático. Assistimos, então, ao florescimento do amor entre Undine e Christoph, no relacionamento à distância que iniciam. A barragem onde Christoph trabalha como mergulhador constitui-se como lugar idílico do casal, cuja preponderância vai crescendo ao longo do filme. Depois de terem contracenado em “Transit” (2018), a química entre Beer e Rogowski é palpável, como o comprova a maravilhosa cena em que Undine ensaia uma das suas palestras para Christoph. O conteúdo do texto aborda a dor fantasma provocada pela demolição de um edifício histórico da cidade berlinense. Mais uma vez, o romance como epicentro narrativo permeável às preocupações sobre o peso do passado alemão na atualidade.
Por outro lado, a recorrência em cena de comboios, quartos de hotel e apartamentos de arrendamento provisório, sublinham a ideia de fluxo e movimento constante, já presente na longa-metragem anterior do realizador. O facto de Undine trabalhar como freelancer, completa o quadro de uma paisagem social que convida ao anonimato, à frieza e ao distanciamento entre as pessoas, onde tudo é efémero e dificilmente vinculativo. Um contexto que vai erodindo qualquer matriz identitária, individual ou coletiva.
Com o aproximar do final do filme, agudiza-se a natureza trágica da trama. Literal e figurativamente é necessário enterrar o passado para evitar que a história se repita. Na última cena de “Undine”, com a imagem filtrada pelos tons azuis do crepúsculo matutino, surge um flutuante plano ponto de vista, com origem nas águas da barragem e direcionado a Christoph. Progressivamente, a imagem submerge até encerrar o filme em negro. O paradeiro de Undine permanecerá uma incógnita, tal como o futuro de Berlim, eternamente assombrado pelo passado. O cineasta alemão inaugura assim um presumível novo capítulo da sua obra, alicerçado na mitologia e no melodrama, sem nunca perder de vista o subtil mas certeiro comentário à sua pátria e ao estado do mundo.