Valete e o Porto “num só caminho”
Foi num só caminho que Valete e o Porto se encontraram na noite de 21 de dezembro e num só caminho se separaram: com a plena consciência do valor do rap. Foi um concerto prolongado, com mais encores que o previsto, que mostrou em pleno a sintonia entre o rapper e a cidade, a que Valete chamou de ‘casa do hip-hop’, falando de Mind da Gap e de Dealema. No entanto, não se pode esquecer a data de convidados que encheram esta celebração da carreira de Valete, entre Xeg e Papillon, que uma eventual pausa por má disposição não arruinou.
Foi DJ Ride que abriu as hostilidades. Com dez anos de carreira e quatro álbuns já lançados, é alguém já muito premiado na sua carreira, com vários títulos em concursos de música eletrónica, para além de ter uma agenda internacional. A sua diferença em relação aos demais está na medida em que trouxe a mesa de misturas da música eletrónica para um ambiente urbano, dos ditos subúrbios, com um profundo gosto pelo hip-hop. No entanto, resultou em pleno, com uma retrospetiva dos quarenta anos deste género musical, com várias referências nacionais e internacionais, e com um gostinho a quem sabe arriscar. Uma referência também ao célebre remix de “Verdes Anos” – versão original de Carlos Paredes -, feita com Stereossauro (o duo é conhecido como os Beatbombers, responsáveis por vários triunfos internacionais nas mesas de mistura), outro músico emergente da eletrónica em Portugal. DJ Ride, que atuaria durante quase uma hora, chamou Xeg, que deu “Oh Mãe” ao som das misturas e do virtuosismo do primeiro. Ficou na retina e no ouvido, para além de ter aquecido o ambiente o suficiente para a onda massiva que Valete viria a trazer, para além de ter ajudado na própria atuação deste.
Ovação estrondosa ao rapper lisboeta, que entrou ao lado de Bónus (o rapper Adamastor também seria lembrado no concerto) ao som de “À Noite” e, a solo, “Educação Visual. Este foi quase um teste ao público, na sua maioria com menos de 30 anos – uma sondagem que Valete fez questão de fazer na hora -, que quis perceber se este gosto por si era coisa de agora ou se era atirado para as suas origens. Foi prova disso, de igual modo, o que se passou nas duas horas seguintes. Porém, enquanto cantava, “Mulher que Deus Amou”, Valete teve de parar, por uma breve indisposição. Uns dez a quinze minutos depois, alguma expectativa no ar cessou quando este regressou e completou a música. A partir daí, não se parou um minuto, tendo também passado pela polémica “BFF”, que o rapper não deixou passar em claro, não se rendendo ao chamado “rap cinematográfico”. Ainda mais do que o álbum “Educação Visual” (2002, ao qual as faixas antes mencionadas pertencem, para além de “Ser ou Não Ser”, ), as “rimas” de “Serviço Público, disco de 2006, gerariam o entusiasmo do público, muito vibrante. Valete fez questão de puxar de forma intensa pelo público, dizendo que esperava que este superasse o de Lisboa.
“Monogamia” e “Não te Adaptes” acompanhariam o furor e o estrondo que “Subúrbios”, “Canal 115”, “Anti-Herói” e, especialmente, “Roleta Russa” gerariam. Um “Serviço Público” a quem estava naquele Hard Club a recordar a sua adolescência e a poder vibrar, na primeira pessoa, bem de perto, com o que Valete trazia no seu repertório. Para quem pensava que isto seria somente um apresentar dos novos trabalhos – que também foram muito bem acolhidos e recordados pelo público -, ficou um bom gosto e a possibilidade de reviver aqueles beats, aquelas palavras, aquelas rimas, aquela conjugação que tanto sentido faz e que continua a fazer. Valete deixou vários avisos, aconselhando aos músicos que ali estavam para escrever para o espírito e do interior para o exterior, que ajudassem as pessoas que mais sofrem, nos pingos da chuva das redes sociais, na que considerou a era mais depressiva da humanidade. Outro foi o de, acima de pensar em sonhos desmesurados, com um sabor revolucionário, de sentir a necessidade de mudar o mundo, o conselho de olhar pelo nosso círculo, de começar essa mesma mudança com os mais íntimos, os mais próximos. Partilhou a perda da sua avó, trocando as visitas que poder-lhe-ia ter feito com a ambição de mudar o mundo, de apelar à revolução mundial com a sua música.
Para a festa, chamou Xeg e Papillon, que cantaram por uma vez a solo a convite do rapper. Xeg trouxe “Mais Pesados da Capital”, Papillon – foi visível a empatia e a comoção do público com a sua chegada e a sua presença – cantou a acarinhada “Impec”, cuja eventual doçura e intimidade foi engolida pelo espírito frenético e fervoroso do Hard Club. Valete fez-se, de igual modo, acompanhar pela sua crew, em especial quando trouxe as novas canções, que farão parte do disco a sair em 2021 “Em Movimento”. “Rap Consciente” e “Colete Amarelo” foram totalmente devastadoras e criou-se um ambiente ainda mais frenético, que parecia transcendente e que havia dado a tal energia “a 150%” que Valete dizia, agora, ter. O Porto começava a ganhar a Lisboa, com ele a dizer “Porto 1 Lisboa 0”. Os rasgados elogios do rapper àquele ambiente não eram em vão, eram, todos eles, justificados.
Tamanha energia justificou não um, nem dois, mas três encores. Repetiram-se músicas, como “Roleta Russa” ou “Rap Consciente” – este dedicado ao pai do rapper – mas tudo terminou com mais um “banho” de intensidade e daquele apetite revolucionário e transcendental que Valete tão bem sabe incutir e traduzir – “Colete Amarelo”. “Só mais uma” ouviu-se por entre essas duas vezes, às quais o artista sempre correspondeu. A energia a 150% tinha de ser canalizada para a festividade, que se fez com a sensação da juventude que fez questão de eternizar o que Valete, até aqui, veio compondo, e o que tem revelado, com a realidade presente em mente, àqueles que, apesar de não o conhecerem então, descobrem a sua influência, o seu peso, a sua virtude.
No final, o Porto deu cinco a zero a Lisboa – foi Valete que o disse – e a ideia tentadora de um concerto anual deste na Invicta. Ficaram alguns conselhos, como a importância da voz interior para que se possa transformar a vida em algo saboroso e valioso, mas, e acima de tudo, ficaram muitos braços, muitos gritos, muita animação, muito fervor. A juventude que preencheu o Hard Club correspondeu à chamada que o artista fez e ajudou a que o ambiente fosse engolido naquela aura de uma revolução que, por mais que se possa querer que seja exterior, é interior. Aquela que o rapper tanto recomendou e que tanto mencionou. A um só caminho se encontraram, a um só caminho, daqui em diante, seguem. O Porto e Valete são companheiros, são amigos, são amantes de rimas e amantes da vida.