Vida e obra de Ernest Hemingway, um dos maiores vultos da literatura norte-americana

por Lucas Brandão,    17 Outubro, 2017
Vida e obra de Ernest Hemingway, um dos maiores vultos da literatura norte-americana

No contexto das epopeias modernas e contemporâneas, Ernest Hemingway trouxe o heroísmo badalado e ansiado por aqueles que desejavam ver o ser humano valorizado perante a adversidade. As constantes viagens que encetou, para além das experiências na primeira pessoa em conflitos bélicos, levaram-no a reforçar essa necessidade de exultar a força de caráter e de perseverança do homem. Grandes marcos da literatura do século XX derivam deste autor, que muito privou com outros literatos, mas que se firmou na sua experiência singular. Hemingway é, com isto, um dos mais denotados e reforçados vultos da literatura norte-americana, que saltou de um lado do Atlântico para inspirar o outro.

Ernest Miller Hemingway nasceu a 21 de julho de 1899, num subúrbio de Chicago, no estado norte-americano do Illinois. Filho de pais educados e respeitados nessa periferia, em que o pai era físico, e a mãe música, cresceu rodeado de apoio no que toca à sua instrução, embora não gostasse da sua progenitora, muito por esta o impingir a tocar violoncelo. Mesmo assim, as lições de música seriam um tema a escrutinar na sua futura obra “For Whom the Bell Tolls”, de 1940, que descrevia a brutalidade vivida e testemunhada pelo autor na Guerra Civil Espanhola; e que importava o contraponto musical para a forma como estruturou esta narrativa. A história seria protagonizada por um jovem americano das brigadas internacionais e aliado à República espanhola, com a missão de explodir uma ponte na cidade de Segovia; e que, à imagem dos muitos heróis das obras do autor, passaria por uma série de testes aos seus limites individuais e coletivos, emocionais, físicos e mentais.  O título proveio de um poema do lírico John Donne, em que meditou sobre a oração, a dor, a doença, e a saúde.

Durante as férias que passou na sua infância, aprendeu, com o seu progenitor, a caçar, a pescar e a acampar nos bosques e nos lagos do norte do estado do Michigan, experiências e práticas que o levariam a desenvolver um espírito aventureiro e interessado por ilhas isoladas e remotas. Durante os anos em que eclodiu a I Guerra Mundial, o futuro escritor estudou na escola secundária, onde praticou uma série de desportos, e se destacou nas aulas de inglês, para além de ter frequentado a orquestra musical. Ainda sobre orquestras, deu entrada de um artigo jornalístico seu, numa aula de jornalismo, quanto a uma sessão da Chicago Symphony Orchestra, dando o mote para, em conjunto com artigos desportivos, uma carreira jornalística de promessa. Seria o primeiro passo para, a partir de um estilo bastante assertivo e informativo, se afirmar pela escrita e pelas grandes coberturas situacionais e contextuais.

Ainda antes do conflito bélico terminar, em 1918, juntou-se a este ao abrigo da Cruz Vermelha, tornando-se num condutor de ambulâncias em Itália. Pouco tempo depois, juntou-se à frente italiana, onde conheceu o também autor John Dos Passos, descendente de imigrantes portugueses. Algumas das peripécias que visualizou durante a incidência bélica foram retratadas na sua literatura, entre estas uma explosão numa fábrica de munições, onde resgataram o que restava dos seus trabalhadores. Isto foi plasmado em “Death in the Afternoon” (1932), um livro onde Hemingway apontou e louvou a prática tauromáquica, reforçando a coragem e a ousadia dos forcados perante o touro, caraterísticas detidas por aqueles que, perante o receio e o temor, salvavam o que sobrava desse sucedido. Outros incidentes iriam lesar fisicamente o norte-americano, que, apesar do acontecido, iria receber uma medalha de bravura advinda do governo italiano, pelo apoio prestado aos seus soldados. Seria, entretanto, hospitalizado durante seis meses, em Milão, onde foi operado a ambas as pernas, fruto das lesões sofridas durante a Guerra. Neste período, construiria mais amizades, desta feita com o escritor Henry Serrano Villard; e conheceria o amor na forma da enfermeira Agnes von Kurowsky, nove anos mais velha que Hemingway, mas com quem não formalizaria casamento. Este seria um duro e rude golpe na vida conjugal do autor, que regressaria a casa em 1919.

So far, about morals, I know only that what is moral is what you feel good after and what is immoral is what you feel bad after.”

‘Death in the Afternoon’ (1932)

Mesmo sem ter chegado aos vinte anos de idade, voltou com uma farta experiência de vida, maturidade que lhe levaria a, com os seus amigos do ensino secundário, acampar pela natureza do Michigan, inspirando-o a mais um conto do seu cunho. “Big Two-Hearted River” (1925) é protagonizado pelo semi-autobiográfico Nick Adams, que embarca por um périplo por essa mesma Natureza, e onde coloca em perspetiva o pendor regenerador desta, para além da vertente destrutiva que a guerra despoleta na alma. Muito daquilo que foi a descrição cénica bebeu dos quadros do pintor pós-impressionista Paul Cézanne, que maravilha o autor nesta digressão sem enredo. Agraciado por esta solitude, voltou à colaboração jornalística, desta feita em Toronto, no Canadá, onde aceitou ser correspondente estrangeiro. Pouco depois, passou a viver e a trabalhar em Chicago, onde conheceu o autor Sherwood Anderson, e a sua futura esposa Hadley Richardson, amiga da irmã de Hemingway, oito anos mais velha que este. Mal decidiram casar-se, deliberaram, também, que embarcariam numa viagem pela Europa, ficando a viver em Paris em 1921, dois meses depois de se casarem, precisamente por sugestão de Anderson.

A capital francesa seria um polo de enorme atração e fervor cultural e literário para Hemingway, que privaria com a sua futura amiga e madrinha do seu filho Jack Gertrude Stein, o irlandês, e companheiro de vida boémia James Joyce, e o compatriota, e companheiro de viagens Ezra Pound. O modernismo pulsava na alma destes três e dos demais rostos que os acompanhavam, e, neste núcleo, também conheceu os pintores Pablo Picasso, Juan Gris, e Joan Miró. Uma “Lost Generation” de autores, a quem se associava uma onda de artistas vanguardistas, e autores esses que seriam ressalvados, dessa forma, na obra “The Sun Also Rises” (1926). Este livro levaria expatriados britânicos e americanos da Guerra Mundial – baseados nesses autores que conheceu – ao festival de San Fermín, na região de Pamplona, em Espanha, para ver as corridas de touros, e as touradas, país e eventos sobejamente apreciados pelo autor. Aqui, relatou a vida que se experienciava e se partilhava nos cafés parisienses, para além do entusiasmo que sentia no festival tauromáquico. Esta obra seria determinante naquilo que era a teoria do Icebergue, aplicada à caraterização das personagens, que seriam gradualmente descobertas consoante a narrativa se desenrolasse, e que passariam uma imagem simples e pouco intrigante de início.

Nestes vinte meses por Paris, criou mais de oitenta histórias para o “Toronto Star”, jornal para o qual escrevia, incluindo práticas tradicionais e rústicas pelas nações europeias, e a Guerra Greco-Turca. No entanto, a sua esposa perderia uma série de manuscritos seus, em 1922, que o levaria a necessitar de recuperar algum fôlego, e de regressarem a Toronto, onde o filho John nasceu, em 1923. Neste período, “Three Stories and Ten Poems” daria o pontapé de saída à literatura criada e lançada pelo norte-americano, seguido por um segundo volume – “In Our Time”. A vida de literato interessava-lo de sobremaneira, e fê-lo voltar à Europa, em 1924, com uma história de destaque e de referência, de seu título “Indian Camp”, que estrearia a personagem de Nick Adams, e a dicotomia entre nascimento e morte. Uma lufada de ar fresco seria conferida ao género das pequenas histórias, numa toada declarativa e vivaz pela literatura norte-americana, que seria aprofundada pelo contemporâneo F. Scott Fitzgerald.

Em 1925, após umas férias na Áustria, conheceria Pauline Pfeiffer, que se tornaria na sua segunda esposa, e que o encontrou com o pretexto de assinar contrato com uma editora. Antes de se divorciar, o caso entre ambos seria descoberto, e o desenlace proporcionar-se-ia em 1927, já após dividirem os bens partilhados. Pfeiffer passou, desta forma, a viver em Paris, colaborando na revista Vogue, e ajudou-o a redigir uma nova compilação de contos, agora “Men Without Women” (1927), onde o divórcio, a infidelidade, a luta por recompensas, e o próprio boxe – o célebre “Fifty Grand”, onde a omnisciência do autor marca uma rara aparição, tal como em “A Matter of Colour” – são temáticas aludidas e exploradas. O realismo é uma nota de destaque de todo este repertório, embora salte à vista uma necessidade de glorificar o ser humano. A sua nova esposa, Pauline, ficou grávida de Hemingway, e quis voltar para o seu país, ao lado do futuro pai da sua criança. Dos Passos, amigo pessoal do escritor, recomendou viverem em Key West, na Flórida, e o casal deixou Paris em 1928, sem antes ter um acidente que o deixou com uma cicatriz permanente na testa. Seria a última vez em que viveria numa grande cidade, passando a dar forma ao espírito de perscrutador dos lugares mais recônditos.

Nesta proximidade às Caraíbas, Hemingway levou a esposa e o recém-nascido Patrick, filho de ambos. No entanto, o parto teria algumas conturbações, que seriam retratadas em “A Farewell to Arms”, uma das principais obras da literatura do norte-americano, e cujo título deriva de um poema do autor inglês do século XVI George Peele. Lançado em 1929, o livro devolve o cenário da Primeira Guerra Mundial, em que, na primeira pessoa, um expatriado tenente, e membro do corpo médico do exército italiano se apaixona, e se debate com as iniquidades de caráter que a guerra traz, para além do sofrimento sentido pelas populações. Antes de passarem a fixar-se em Key West, viveram em alguns estados do leste norte-americano, e foi nesta itinerância que tomou conhecimento do suicídio do seu pai. Passando este por dificuldades económicas, tinha recebido uma carta, pouco antes de tomar essa atitude, do seu filho, que aconselhava o progenitor a não se preocupar com as suas dificuldades financeiras.

“If people bring so much courage to this world the world has to kill them to break them, so of course it kills them. The world breaks every one and afterward many are strong at the broken places. But those that will not break it kills. It kills the very good and the very gentle and the very brave impartially. If you are none of these you can be sure it will kill you too but there will be no special hurry.”

‘A Farewell to Arms’ (1929)

Após esta fase de luto e comoção, voltou a França, lançando a obra acima mencionada pouco depois, que o firmou como um dos grandes nomes da literatura moderna. Seguir-se-ia “Death in the Afternoon”, e, para tal, Hemingway viajou por Espanha, fascinando-se pelo interesse trágico e dualista – vida e morte – que as touradas induziam. De volta ao seu país, nos anos 30, dividia o seu tempo entre Key West, e o estado do Wyoming, onde conviveu com John Dos Passos. Entretanto, mais um acidente vitimaria o autor, partindo o braço num acidente de carro. As consequências arrastar-se-iam por um ano, tempo durante o qual escrevia com grande custo. 1931 traria Gregory à vida, o terceiro filho de Hemingway, e uma vida relativamente estabilizada, onde convivia com alguns dos seus amigos em expedições de pesca, incluindo viagens para a Europa e a Cuba.

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Hemingway com a sua segunda esposa, Pauline.

Dois anos depois, com Pauline, fez um safari no leste africano, colhendo algum material para várias histórias – como “The Snows of Kilimanjaro” – e para a célebre obra “Green Hills of Africa”, datado de 1935, onde relata uma série de experiências e de contemplações perto da Tanzânia e do Quénia. A saúde voltou, porém, a ser um empecilho nos intentos do autor, que sofreu de disenteria, e que o levou a retornar mais cedo. Com o lucro que obteve das várias obras lançadas e vendidas, comprou um barco, denominado Pilar, e passou a explorar as Caraíbas, não muito longe de Key West. Antes de se deparar com a necessidade de regressar ao Velho Continente, escreveu “To Have and Have Not”, de 1937, que retrata um capitão de um barco, precisamente de Key West, e que é levado para o meio do perturbado e controvertido mercado negro, encetado na Flórida e em Cuba. Perante a Grande Depressão norte-americana, o protagonista é obrigado a envolver-se nesse transporte de produtos ilícitos e contrabandeados, dando o mote para o escritor fazer uma crítica à sociedade de então, bebendo da ideologia marxista na sua efetivação.

O acontecimento que o levou a regressar à Europa, em 1937, foi o convite, por parte da North American Newspaper Alliance, de cobrir a Guerra Civil Espanhola. Nesta cobertura, esteve com o realizador holandês Joris Ivens, que desejava contar com Hemingway para escrever o guião do seu filme “The Spanish Earth”, após John Dos Passos ter abdicado ao ver um amigo seu ser preso e executado, e mudado a sua opinião quanto aos republicanos de esquerda. Dois anos depois, passou a viver em Havana, na capital de Cuba. Consigo, esteve a jornalista Martha Gellhorn, que conheceu em pleno momento bélico, em solo espanhol. Findavam os anos 30, e arrendou uma grande propriedade – “Finca Vigia” – nessa ilha centro-americana, após a família o deixar no verão de 1939. O casamento com Gellhorn consumar-se-ia em 1940, e, com ela, voltaria a viver nos Estados Unidos, intercalando a sua residência no estado do Idaho com a de Cuba. Aqui, daria o passo para encetar uma das grandes paixões da sua vida, os gatos, acolhendo dezenas no seu terreno na ilha. A sua nova esposa inspirou-o para “From Whom the Bell Tolls”, lançado em outubro de 1940, e nomeado para um Prémio Pulitzer. Entretanto, foi encarregue, ao abrigo da revista Collier, de trabalhar na China, e Hemingway, acompanhando-a, viu rumores, em torno da sua figura, a crescerem quanto à sua associação aos serviços de espionagem soviéticos.

Antes dos Estados Unidos entrarem no grande conflito militar que havia despoletado na Europa, no ano de 1941, o autor, sentindo-se com uma missão a desempenhar neste contexto, pediu ao governo cubano o seu barco, para emboscar alguns dos submarinos alemães que marinavam pela costa do país. Neste período, entre 1942 e 1945, deixou a escrita de lado. Contudo, já na parte final do conflito, Hemingway esteve pela Europa, onde se apaixonou novamente por uma jornalista, desta feita Mary Welsh, da revista Time. Este caso não começou de forma muito favorável, pois o autor recusou-se a prestar-lhe ajuda inicialmente, após ela não conseguir viajar num avião de imprensa. Trocando galhardetes pelo meio, foi logo ao terceiro encontro entre ambos que o escritor, já divorciado, não resistiu em pedir Welsh em casamento. Entretanto, viajou para a Normandia, onde cobriu vários dos conflitos sucedidos naquela zona; e juntando-se ao 22º regimento de infantaria norte-americana, onde chegou a ser líder de uma pequena fação numa vila dos arredores de Paris. Isto traria represálias ao autor, que seria acusado de contravenção às Convenções de Genebra, a lei internacional de tratamento humanitário em tempo de Guerra.

A libertação da cidade de Paris decorreria pouco tempo depois, e Hemingway selaria paz com a cidade, revendo Pablo Picasso, e reconciliando a sua amizade com Gertrude Stein. No entanto, a vontade visceral de permanecer na frente dos fogos-cruzados excedeu-se a ele, que foi para o Luxemburgo assistir a uma das inúmeras batalhas do conflito, mas sendo hospitalizado com uma pneumonia. Pouco tempo depois de a debelar, este tinha terminado, decorria o ano de 1945. Dois anos depois, seria laureado com uma estrela de bronze pela bravura demonstrada durante a guerra, para além da adenda referente ao relato literário das lutas e glórias do exército norte-americano. Antes, já havia casado com Mary, que teve uma gravidez ectópica pouco tempo depois. A densa carga de incidentes que alastrava o norte-americano permaneceu, levando a uma série de acidentes, e conduzindo Hemingway a uma depressão. A isto, juntaram-se as muitas mortes de amigos seus, também autores, tais como William Butler Yeats (1939), Fitzgerald (1940), Anderson, Joyce (os dois 1941), e Gertrude Stein (1946), para além do seu editor de longa data Max Perkins (1947). Hipertensão, diabetes e problemas de peso também se juntaram a este conturbado rol de vicissitudes, de um período muito funesto da sua vida.

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Hemingway com o seu terceiro filho, Gregory.

Foi por volta de 1946 que começaria a voltar às suas fartas narrativas, desta feita com “The Garden of Eden” (publicado postumamente em 1986), em que conta cinco meses da vida de um escritor e da sua esposa no sul de França. Mesmo perante uma tendência de Hemingway de valorizar a personalidade masculina, a obra explora as relações entre géneros, incluindo a androginia e o esboroar e desmistificar das diferenças entre estes. 1948 levaria o autor e a sua esposa para o continente onde se conheceram, ficando por Veneza alguns meses. Europa parecia fatal para Hemingway, que se voltou a apaixonar, desta feita por uma jovem de 19 anos, de seu nome Adriana Ivancich. Esta relação muito platónica deu o mote para “Across the River and into the Trees” (1950), muito bafejada com críticas negativas, e onde conta a história de um general na Primeira Guerra Mundial, e da sua paixão por uma jovem veneziana. O papel da morte é muito posto em causa, na forma como ela é encarada, e bebe muito da teoria do icebergue, para além de um simbolismo pouco usual na escrita direita e heroica do autor, e de um ritmo muito crescente em intensidade.

Contudo, o sucesso estava às portas de retornar ao autor, com a escrita, em somente oito semanas, de “The Old Man and the Sea” (1952) que lhe conferiria um Pulitzer, e um estatuto de celebridade mundial. Este traz as vivências de um velho marinheiro, em Cuba, que volta a enfrentar de frente o mar, e travando uma acesa luta com um marlim, designação comum para peixes teleósteos perciformes. Ideais de superação e de transcendência no confronto com obstáculos, para além da inspiração incutida nos mais novos, são traços que esta obra não se coíbe de seguir. 1954 devolveria África à vida do autor, onde enfrentou a morte por duas vezes, ambas em acidentes de avião, no Congo. As lesões que sofreria seriam o princípio de uma degradação física paulatina, mas sentida. Para combater as dores, bebia álcool excessivamente. Porém, foi nesse mesmo ano, no mês de outubro, que seria galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, não se deslocando a Estocolmo, na Suécia, porém, para o receber. No discurso que deixou sobre essa atribuição, reforçou a solitude de um autor, mesmo com o crescimento da sua notoriedade.

A saúde permaneceria um enorme problema na sua vida, embora não o impedisse de regressar a Paris, onde havia estado no Ritz Hotel, vinte e oito anos depois de lá ter estado, e onde deixou malas que nunca chegara a recuperar. Naquele ano de 1956, retornaria ao contacto com elas, descobrindo uma série de cadernos escritos daqueles tempos da sua juventude. Quando regressou a Cuba, no ano seguinte, sentiu-se motivado para compilar esses textos, e lançar “A Moveable Feast”, referenciando uma série de caras com quem tinha estado, e de episódios que havia experienciado como jornalista expatriado, para além de nomear a sua primeira esposa. Esta obra só seria lançada em 1964, pela viúva de Hemingway, três anos depois de partir.

When spring came, even the false spring, there were no problems except where to be happiest. The only thing that could spoil a day was people and if you could keep from making engagements, each day had no limits. People were always the limiters of happiness except for the very few that were as good as spring itself.

‘A Moveable Feast’ (1964)

No entanto, a sua propriedade em Cuba tornou-se bastante frequentada por interessados e turistas, pelo que o autor necessitou de recuperar a sua privacidade. Para além disso, viajou para Espanha em 1959, investigando e preparando conteúdo para alguns artigos sobre touradas, para a revista Life, ultrapassando largamente o limite de palavras, e necessitando da assessoria do também escritor A. E. Hotchner., levando à obra “The Dangerous Summer” (póstuma, de 1985). Este, surpreendido com o estado do amigo, descreveu-o como anormalmente desorganizado e confuso, numa altura em que já perdia a sua visão. Tentando recuperar a tal prosperidade, comprou uma outra propriedade no estado do Idaho, nos Estados Unidos, concomitantemente com a chegada de Fidel Castro ao poder, embora não fosse contra este. No entanto, foi mal este anunciou a vontade de nacionalizar todas as propriedades que estrangeiros tinham em solo cubano que se consolidou a mudança permanente para o seu país natal, não deixando de guardar alguns manuscritos num cofre em Havana.

Numa das demais viagens que fez a Espanha, correu o rumor de que estava muito perto de morrer. A sua esposa, Mary, envidou esforços para perceber o que se passava, e, embora o boato fosse desmentido, a verdade é que Hemingway tinha os dias bastante limitados pelo seu estado de saúde. Foi crescente o seu isolamento, sentindo a vontade de sair de casa, e preocupando-se em demasia com a sua segurança, e com todo o dinheiro do qual a família dispunha, para além dos impostos dentro e fora de portas. A paranoia na qual estava absorvido cresceu quando sentia que o FBI vinha observando todos os seus passos, processo que já se vinha arrastando desde que vivia em Cuba, nos anos 50. Internado numa clínica psiquiátrica, recebeu, de forma totalmente secreta, eletrochoques, para além de uma série de medicação que o deixou ainda mais transtornado e alienado.

De regresso a casa, mostrou ter reações que não apontavam para o rumo da melhoria, pelo que regressou ao hospital para mais tratamento de choques. Dois dias depois de um novo retorno a casa, no dia 2 de julho de 1961, e após já ter dado indícios de que o faria, Ernest Hemingway suicidou-se com um tiro de caçadeira. Trancando-se na cave, onde estava o armamento que colecionava, disparou da sua arma favorita, embora as versões oficiais apontem que tenha sido algo acidental. Nos últimos suspiros da sua vida, mostrava um padrão de comportamentos similar ao do pai, antes deste também ter acabado com a sua vida. Registos médicos, trinta anos depois da sua morte, apontaram que Hemingway padecia da mesma doença que a do seu progenitor, de seu nome hemocromatose. A impossibilidade de digerir ferro no organismo levou a um deterioramento crescente, tanto a nível físico como mental, com a bebida a pouco ajudar ao seu controlo.

As várias epopeias redigidas por Ernest Hemingway começaram na sua agitada e viajada vida, que deambulou de realidade em realidade, até a um fim que acusa a questionada eternidade. Por entre casamentos e comprometimentos, tanto com um chamamento de dentro, como pelos amigos de fora, o norte-americano conheceu uma constante superação, por mais condenado que o seu destino estivesse. Nada das circunstâncias relativas ao seu futuro lhe levaram a viver o que não queria, desdobrando-se num corpo que saiu fustigado, mas conhecedor das maiores agruras do mundo. A sua literatura reflete toda uma bagagem que, impossibilitada de ser medida e balançada, nunca se deixou ser prendida, constrangida, arrependida. Dos tantos heroísmos e epopeias do ser humano que criou, Ernest Hemingway é o culminar, em vida e obra, da inspiração em constante superação.

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