“Vidas Passadas”, de Celine Song: uma perdição amorosa e melancólica do tempo em pormenor naturalista
Este artigo pode conter spoilers.
Há pouco mais de um ano aquando da escrita deste texto, o evento de cinema independente por excelência nos EUA, o festival de Sundance, dava a conhecer à audiência e críticos o filme de destaque da edição e uma nova promessa artística. A corroborar a qualidade da película, o estúdio A24 assumiu as rédeas da distribuição, numa ingressão em cinema asiático-americano logo após o sucesso de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo. A obra em questão diz respeito a Vidas Passadas, uma estreia de excelência pela cineasta Celine Song.
Partindo do típico drama-romântico dialogante e espontâneo, de branda exposição mas forte melancolia, o cenário urbano nova-iorquino e temáticas de passagem do tempo e amor impossível assumem o motor daquele que reúne as virtudes de um futuro clássico. Um argumento e direção com precisão naturalista no cerne — foco no poder das quietas falas e silêncios ensurdecedores —, elenco que sucede na fixante humanização das personagens e técnica prestadora de uma atmosfera anestesiante, ocupam o volante, mudanças e pedais do veículo, caminho a uma poderosa viagem.
O filme tem início com um plano dos três protagonistas. Intrusivo discurso sobre um “homem americano” invade o consciente de uma mulher (Greta Lee) que ocupa o centro da imagem, câmara progressivamente próxima da sua desconfortável expressão. Dilema amoroso triangular apresentado, o espectador retrocede 24 anos no tempo para um cenário suburbano de Seul, Coreia do Sul. Dois miúdos navegam as estreitas ruas, rapariga à frente a choramingar por ter sido vencida nas notas escolares pelo seu acompanhante que a tenta consolar. Numa mudança inocentemente infantil, a menina, Na Young, afirma à sua mãe que quer casar com o rapaz, Hae Sung. Noutro dia, as duas crianças ingressam num passeio acompanhadas pelas mães. Entre o tumulto, olhares cruzam-se e mãos são dadas. Porém, numa infeliz contradição, a mãe da miúda afirma que a família irá sair do país, destino só de ida. Faz-se o primeiro “adeus” entre os meninos.
A máquina do tempo avança 12 anos no passado. Agora “norte-americanizada” como Nora Moon (Greta Lee), a tal miúda, tornada numa jovem-adulta aspirante a dramaturga premiada, olha para os horizontes de Manhattan, sonhos tão acentuados quanto os arranha-céus. Desde sempre em Seul, um crescido e saudoso Hae Sung (Teo Yoo) cumpre as suas tarefas militares e estuda engenharia. Os nossos pombinhos cruzam-se de novo quando Nora descobre o desejado parceiro pelo Facebook. Após primeiras receosas mensagens, ambos combinam chamadas por Skype, frequência e entusiasmo por trás crescentes. Nesses momentos, a antiga persona de Na Young regressa. Hae Sung interrompe os imprescindíveis compromissos com amigos para conversar. As faíscas são avassaladoras. Porém, o destino revela-se de novo implacável, receios do homem em viajar até Nova Iorque e desafios às aspirações profissionais da mulher surgem como inultrapassáveis obstáculos. Em tom de desilusão necessária, Nora pede o fim das conversas. Faz-se um segundo “adeus”. Num terceiro e último salto no tempo, de regresso ao presente, a nossa protagonista, agora a entrar na mundanidade da meia-idade, é esposa de Arthur (John Magaro), um escritor com quem partilha o insucesso. A desapontante tranquilidade da vida de Nora vê-se interrompida quando descobre em espanto que a sua paixoneta afastada iria passar férias na chuva de Nova Iorque. Derradeiro encontro estipula-se.
No seguimento da analgésica intimidade naturalista pela qual o filme envereda, a técnica é de execução maestra na exposição humilde e minimalista. Apesar da pequena escala da produção, a fotografia consegue retratar o belo grandeur vazio da cidade de Nova Iorque, protagonistas centrados nos planos gerais com o vasto cenário urbano em torno a engolir, relembrando Annie Hall (1977). De resto, imagens de simples composição e próximas das personagens estimulam o clima realista e relacionável de tudo. A montagem é eficaz em não se fazer notar, o seu ritmo fluído e consistente estabiliza o espectador pela viagem no tempo. Prestando a componente sossegada e calmante da atmosfera, o áudio de ruídos abafados, quase de um sonho, e eletrónica banda-sonora de ambiente funcionam para o efeito, similar ao trabalho auditivo de Her (2013). Ferramentas cinematográficas todas empregues em eficaz serviço da visão central.
Tanto escrita e realizada pela cineasta asiático-americana, as influências da película são claras. Para além dos filmes já mencionados, destacam-se o conceito do amor impossível de Breve Encontro (1945), a intriga romântica dialogante e espontânea do cinema da nouvelle vague em filmes como Hiroshima, Meu Amor (1959) ou Jules e Jim (1962) e, claro, das obras contemporâneas por excelência do estilo e temáticas, a trilogia Antes (Before) de Richard Linklater. Assim, o retrato do casual ocupa o foco, o cerne, o seio, o alvo, a base de tudo. Dos gestos faciais subtis, pausas e silêncios envergonhados, às construções frásicas e palavras comuns, o filme nasce e vive pela detalhada precisão na forma como captura a complexa simplicidade do comportamento e relações humanas. Da meticulosa direção íntima à calorosa frescura do diálogo, tal abordagem faz-se notar. Por sua vez, o peso do passado a carregar em cima da caracterização oferece o spin que distingue o filme dos seus semelhantes. Ainda, o elenco trabalha em sublime consonância com a missão de Song. O resultado de tal mistura criativa são personagens que ultrapassam as suas limitações fictícias e transcendem até à consideração de seres humanos. Imagem e som evoluem para assumir a forma de uma janela para outras vidas.
Fundamentalmente, o grande feito do filme diz respeito às arestas que consegue limar no que concerne a passagem do tempo e, subsequentes, mudanças nos protagonistas. Uma centena de minutos conseguem aglomerar duas décadas de vidas, amontoando peso em caracterização e carga emocional de forma tal que, para além de tornar impossível tirar os olhos do ecrã, os pequenos e comuns detalhes passam a assumir um impacto avassalador. Quando surge a cena final e é permitida catarse, chorosa descompressão sucede.
Apesar de não se conseguir desprender das fórmulas com que opera e prestar algo incomparável que ultrapasse os limites do género, Vidas Passadas reúne a sua imensa dose de triunfos e traça um futuro soalheiro para Celine Song. Como peça artística, cumpre os seu papel intelectual e emocional a partir do entranhamento total do espectador com o decorrer dos eventos e capacidade de reflexão sobre os mesmos. Na concessão de todo um vasto espaço para reações e introspecção individuais, o filme assume ser um espelho refletor sobre a vida e passado de quem o mira, sobre o que foi e o que poderia ter sido.