Viva Glass! O concerto de encerramento do Festival dos Capuchos
Volta e meia dou por mim a pensar que a música clássica minimalista persiste em ser subrepresentada na programação das orquestras em Portugal. Não sei se a tendência será a mesma noutros países. É pena. Sim, o património que a música clássica nos deixou ao longo dos últimos séculos é celebrado, e esse reportório merece ser revisitado e celebrado pelo que é (e pelo que nos ensina, aliás, sobre a música inventada ainda hoje). Mas como um dos subgéneros mais impactantes e influentes da música clássica, já nascido no século XX, o minimalismo devia ter lugar residente na programação clássica da contemporaneidade.
Felizmente, aconteceu este domingo, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada: o concerto de encerramento do Festival dos Capuchos 2023 aconteceu com a apresentação do Concerto N.º 2 para violino e orquestra de Philip Glass, intitulado “American Four Seasons”; foi, aliás, a sua estreia em Portugal. A performance esteve a cargo da direcção musical de Filipe Pinto-Ribeiro, e da Orquestra de Câmara de Budapeste “Franz Liszt”. A música de Glass, compositor-chave do minimalismo, foi ainda antecedido pela apresentação de dois temas do estónio Arvo Pärt, outro nome relevante da clássica moderna; e do concerto BWV 1056 de Johann Sebastian Bach.
Vamos então por partes. O programa começou com a apresentação de “Orient & Occident”, também em estreia nacional; e de “Summa”, ambos trabalhos de Pärt. A apresentação da primeira peça destacou de imediato a competência da orquestra húngara; destaque-se a forma expressiva com que os violinistas se mexiam nas cadeiras, e se expressavam com o corpo na relação com o seu instrumento. Em “Orient & Occident” destacamos a solenidade e a rectidão, bem como valor dos silêncios, cujas pausas ganham efeito dramático. Em “Summa”, a beleza e o etéreo flutuam como uma pena no ar, ao sabor do vento; música que assemelha a dança, a corpos próximos em movimentos íntimos de aproximação.
Para a interpretação de Bach, o maestro Filipe Pinto-Ribeiro sentou-se ao piano e dali dirigiu a orquestra de câmara, executando em simultâneo o papel de intérprete principal. O concerto é particularmente conhecido pelo seu segundo movimento, “Largo”. De melodia bonita e fácil de entrar no ouvido, com uma leveza embaladora O terceiro movimento culminou com um enérgico e até divertido “Presto”. Foi um excelente interlúdio entre os dois compositores do século XX – que mostrou o quanto as dinâmicas composicionais de Bach se mantém tão relevantes hoje.
Já a seguir a um intervalo, a audiência voltou a ocupar os seus lugares. A sala, esgotada, aguardava a performance da peça que dava nome à sessão de encerramento. Nesta edição, o Festival dos Capuchos teve por tema principal as estações do ano, tendo sido aberto com a mítica composição de Vivaldi, e tendo incluído também os ciclos de estações de Tchaikovsky e de Piazzolla. A conclusão coube a Glass: escrito em 2019, e inspirado a partir da obra de Vivaldi, a peça é composta para violino e orquestra e interliga quatro andamentos com outros temas para violino solo. A relação com Vivaldi é deixada à imaginação: ao contrário, por exemplo, das belíssimas Quatro Estações recompostas por Max Richter, que funcionam quase como que um remix da composição do compositor italiano de há 300 anos atrás, na obra de Glass as semelhanças são meramente conceptuais.
Este concerto para violino e orquestra de Glass tem sabor a revisitação dos seus traços como criador. Emocionamo-nos – em alguns momentos parece até faltar-nos o ar, estranhamos o ritmo e a alteração da nossa própria respiração – com os momentos em que a orquestra se une nas complexas e aceleradas malhas dos melhores momentos de cada um dos movimentos. Frases de Glass que reconhecemos, piscando o olho a outros seus trabalhos anteriores. É com gosto que as vemos a ser tocadas ao vivo, que vemos a forma como por exemplo os músicos dos instrumentos de cordas são obrigados a alternar entre notas, que surgem em pares repetitivos e acelerados; característica, aliás, que resulta numa performance muito exigente (do ponto de vista deste leigo ouvinte de música clássica).
A performance do violinista solo, por exemplo Jack Liebeck, atinge momentos de destreza quase sobrenatural. Há passagens efectivamente tão rápidas, com intervalos entre notas tão acentuados, que nos custa acreditar como é possível aquela execução. Embora nos tenha parecido que a afinação nem sempre tenha estado perfeita, a performance foi muito assinalável. Um grande destaque ainda para um dos membros da orquestra, a teclista responsável pelo sintetizador que, também na obra original, emula um cravo (infelizmente não lhe conhecemos o nome, não consta no programa de sala). Já conhecíamos, de “Einstein on the Beach”, esta queda de Bach para linhas-relâmpago de sintetizador; As “American Four Seasons” não lhe ficaram atrás. Já após os aplausos, aliás, reparamos num cumprimento respeitoso e bem-disposto entre a teclista e o contra-baixista, com este último a simular no ar a velocidade que os dedos da teclista haviam atingido minutos antes. Ela ri-se, e é cumprimentada por mais três colegas ainda antes de abandonar o palco. Do meu lugar, entreguei também o meu reconhecimento e gratidão.
Seria impossível terminar este texto sem o concluir com uma declaração de amor à música deste compositor que tanto me move. Desde a minha adolescência, com a banda sonora de As Horas (2002), que a música de Glass conquistou um lugar que me é muito querido. Já posteriormente, o seu trabalho de electrónica “Glassworks” (1982) me fez reconhecer uma das grandes influências de Sufjan Stevens a compôr partes do seu álbum “Illinois”. Já mais recentemente, a descoberta de “Passages” (1990) e, principalmente, de “Einstein on The Beach”, teve o condão de me fazer revisitar a genialidade de Glass, também noutras explorações possíveis da sua veia artística. “Einstein on the Beach”, em particular, que tive a oportunidade de assistir no grande auditório da Gulbenkian em Novembro passado, é uma revolução da minha compreensão musical do mundo.
Não vou perder nenhuma apresentação de uma obra de Philip Glass, e de outros compositores que tenham incorrido nesta expressão emocionante do valor da repetição, que aconteça nas minhas imediações geográficas. Faço o voto de estar atento às programações das orquestra. E deixo o convite aos programadores: o minimalismo, com a sua ponte com a música pop e electrónica da contemporaneidade, é uma das mais acessíveis e emocionantes entre o grande público e o universo da música clássica. Celebremos a sua beleza. E viva Glass!