“Vortex”, de Gaspar Noé, mostra o poder emotivo do cinema (e do amor) com um casal à espera do fim
Este artigo pode conter spoilers.
Foi há precisamente um ano, no derradeiro dia do Festival de Cannes, que uma pequena multidão aguardava em fila para entrar na sala e desfrutar da sessão Première, à meia-noite com a apresentação do novo filme de Gaspar Noé. Pelo título “Vortex”, não faltava quem fosse antecipando um novo delírio visual, pleno de excessos. Afinal de contas foi esse enfant terrible que provocou — e mais de uma vez — tumultos na sala. Excessos que tivemos oportunidade de testemunhar em diferentes edições do Festival de Cannes. Seja na apresentação de “Irreversível”, em 2002, que levou mais de um terço da sala a sair por não aguentar a carga brutal das imagens que brotavam do ecrã; na trip visual de “Enter the Void — A Viagem”, em 2009. Quem não se lembra do sexo explícito de “Love”, em 2015, ou de “Climax”, uma nova trip alucinada e calórica à base de sangria… Portanto, para quem se recusara ler o que quer que fosse antes da sessão, de “Vortex” seria de esperar… digamos, tudo!
No entanto, quando vemos entrar na sala, para a apresentação do filme, François Lebrun, a Veronika (putain) do filme de culto de Jean Eustache, “La maman et la putain” (1973), ao lado de Dario Argento, o grande maestro do giallo, passamos a contemplar a possibilidade da surpresa. Na verdade, depois dos excessos sensoriais em que foi useiro e vezeiro, Noé apresenta agora uma visão introspetiva da vida, do tempo e daquilo que fazemos com ele, naquele que é também um dos seus melhores filmes. Neste registo sobre os limites do cinema (o sonho dentro do sonho?), encontra-se um elo inesperado que o liga com a obra anterior — a opção estética de dividir o ecrã em duas partes, mas que se complementam e daí oferecer-nos uma abertura de possibilidades de análise.
De um ponto de vista meramente formal, faria até sentido equacionar este “Vortex” como um exercício de cinema realista apostado em inverter para o seu oposto as temáticas obsessivas do cineasta francês nascido na Argentina. É a vida que se capta ao longo das longas sequências que ocupam duas horas e um quarto, quase sempre filmadas em condições rigorosas. Neste caso a do casal de idosos formado pelo cineasta italiano e pala actriz francesa. Ele sem desejo de abandonar os seus livros e movido pela necessidade de escrever um filme sobre a memória; ela a lutar com as limitações da Alzheimer. É o oposto, portanto, entre a vida e a morte, a criação e a destruição, o novo e o velho. Com as extensões paralelas do filho (Alex Lutz) e do neto.
Talvez por aí a escolha acertada do split screen, encarado como uma regra e não um mero recurso, facilitando o abarcar dessa dualidade, como as duas partes de uma unidade. Agilizando a comunhão de pontos de vista aproximados, quase idênticos, pelas duas câmaras, embora sem perder a sua individualidade. Há mesmo algo que se estranha (ou entranha), quando a câmara acompanha os gestos de duas pessoas, a menos quando estão com o neto e o filho. Mas adquire um relevo suplementar quando os planos se cruzam, produzindo extensões dos membros ou corpos das personagens, como sucede quando o braço de Argento alcança o de Lebrun ganhando uma forma inusitada, quase perto do horror em que o primeiro foi mestre. Sendo que um dos planos mais conseguidos é quando nos dão a ver o casal deitado na cama, como se fosse um plano geral, mas que se rompe quando cada um se levanta e afasta essa unidade, justificando a sua duplicidade.
Será natural referir a proximidade que a visão de Noé terá com a de Michael Haneke, em “Amour” (a sua segunda Palma de Ouro, em 2012, depois de “The White Ribbon”, em 2009, ao captar a centelha do amor e o fim da vida dos corpos de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, também eles com tanto património fílmico em comum. No entanto, o próprio Gaspar rejeitou essa proximidade, favorecendo o desejo de se aproximar de um quotidiano filmado da forma mais claustrofóbica, durante a pandemia. Mesmo que se perceba que não terá estado longe a sua própria experiência de proximidade com a morte, quando sofrera há dois anos uma hemorragia cerebral.
Percebe-se também que cada um dos atores teve espaço para criar a sua personagem dentro de um guião minimalista. Algo que se completa com os créditos iniciais, em que o nome de cada um é acompanhado com a data de nascimento, e os finais ao acompanharem várias imagens de Dario e Françoise, plenos de juventude, em diferentes etapas da sua vida. Talvez seja esse mesmo o vortex deste filme, ao remeter-nos para o momento celebratório da existência de cada um. Mesmo que aceitando a premissa de Argento “life is a dream”. Desta forma alcança Noé o seu melhor filme. Na verdade, uma pequena pérola de cinema.