‘You Were Never Really Here’ dá-nos um Joaquin Phoenix mercenário e existencialista

por David Bernardino,    4 Junho, 2018
‘You Were Never Really Here’ dá-nos um Joaquin Phoenix mercenário e existencialista
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You Were Never Really Here, da escocesa Lynne Ramsay que não filmava desde We Need to Talk About Kevin, de 2011, é uma daquelas raras pedras preciosas, mais ou menos disfarçadas, que vão passando de vez em quando pelo nosso circuito comercial, com pouco burburinho e holofote (esse já lá vai, longínquo, quando passou pelo festival de Cannes 2017 vencendo o prémio de melhor argumento e melhor actor principal). Esta é, acima de tudo, uma experiência de exercício formal, uma observação atenta das entrelinhas que pautam o thriller de acção tradicional.

You Were Never Really Here preenche, em sinopse, esse rótulo: um ex-veterano de guerra, traumatizado, que se tornou mercenário para trabalhos mais ou menos sujos (Joaquin Phoenix suja as mãos várias vezes com diversos fluidos, mas sempre por uma nobre causa, esse filho de sua mãe que a visita diariamente e a aconchega na cama). E essas regras de género estão, em tese, todas presentes, desde o aceitar de um “trabalho” ao confronto que o concretiza, no entanto não será esse o foco de Ramsay. O experimentalismo de Ramsay, e por consequência o grande ponto de interesse do filme (e que interesse!), surge na abordagem que é feita às tais entrelinhas: a preparação da emboscada, a observação paciente, as pequenas rotinas e deslocações, o ir buscar algo para comer, o alugar de um carro para o trabalho, o aguardar. A acção propriamente dita torna-se acessória, relegando o espectador para a qualidade de mero observador dos estados de alma do protagonista, com uma interpretação empenhadíssima de Phoenix que talvez nem precisasse de ser assim tão exigente consigo próprio, mas que acaba por o ser, e bem!

Falamos de uma espécie de Taxi Driver moderno, com uma linguagem cinematográfica educada que faz dele um dos mais interessantes neo-noirs recentes, bem mais adequado, sólido e equilibrado que os devaneios de Nicolas Winding Refn, que acabam por se tornar paradigma desse subgénero nesta década, com mais ou menos mérito. A banda sonora é assinada por Jonny Greenwood (guitarrista dos Radiohead), que de forma cada vez mais consistente se afirma como um dos mais interessantes e originais compositores cinematográficos da actualidade, como já demonstrou recentemente através de Phantom Thread. Toda a segurança e ponderação que Ramsay coloca na tela (a falta de informação que é dada ao espectador não permite a existência de pontas soltas a nível argumentativo) fazem de You Were Never Really Here uma experiência visceral que é dada à velocidade de uma martelada como as que Phoenix dá no filme, com uma enorme intensidade, suspensão e objectividade. Uma belíssima surpresa, que demonstra finalmente uma enorme maturidade cinematográfica que teimava em aparecer na filmografia da realizadora.

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