‘1986’ é um retrato da nostalgia dos anos 80 em Portugal
Ainda que possa ser difícil generalizar, há uma característica, para mim fundamental, das novas produções portuguesas que permite, para quem tem interesse pelas mesmas, criar uma relação direta entre o filme ou série e o espectador. Falo da simplicidade, naturalidade se preferirem, que transparece nos movimentos das personagens, nos diálogos que travam umas com as outras, no encadeamento da narrativa; uma simplicidade que é, mais ou menos, como transportar uma câmara no ombro e dizer ao espectador “podias ser tu mesmo aqui, a viver esta vida que filmo“, e o próprio consegue imaginar-se a subir aquela rua de Lisboa, numa cena que pode durar vinte minutos e que leva muitos a considerarem o cinema português monótono. Ora, é exatamente esta naturalidade que Markl veio dar continuidade, em 1986, e são exatamente estas cenas monótonas que, por vezes, transportam um sentimento pesado, que consegue evitar. O que não conseguiu evitar foi a nostalgia da década de 80, facto que lhe permitiu que os portugueses corressem efusivamente para a RTP (Play) e para o sofá nos serões de terça-feira.
1986 é uma série construída sob vidas banais, advindo a sua peculiaridade e beleza da forma como essas mesmas vidas banais se entrelaçam, da caraterização concebida por Markl às personagens e do inteligente uso que faz do marco temporal escolhido para referenciar a cultura. Neste sentido, apresenta-nos uma sociedade estereotipada: Tiago, o rapaz que não é popular e que sofre de bullying, vive uma paixão intensa pela rapariga bonita e popular, Marta; Patrícia, a rapariga gótica, segue o caminho das trevas e apaixona-se por Sérgio, o típico fã de metal a quem não falha o cabelo até aos ombros e a t-shirt dos Iron Maiden; por fim, Gonçalo, o beto apaixonado por Marta, que não hesita no bullying a Tiago e aos seus amigos.
É, exatamente, após ter construído este tão conhecido círculo de tendências sociais que Markl encontra espaço para destruir a sociedade estereotipada que acabara de criar. Para esse fim, socorre-se daquela que me parece ser uma arma eficaz contra a estupidez humana: o humor sob a forma de ironia – lembremo-nos, a este propósito, de Marta a perguntar a Gonçalo se ele, ao entrar na escola, tinha assinado algum tipo de contrato a dizer que o tipo forte devia bater no tipo intelectual e sensível. Sendo este ramo a “praia” de Markl, não é de esperar que o seu objetivo tenha sido atingido e que consiga, de facto, provocar no espectador vontade de rir.
E porque todas as séries têm, seja qual for a forma que assumam, um evento central que funciona como alavanca a todos os outros, 1986 não é exceção. Aqui, sentimentos e estados de espírito são moldados pelo decorrer da disputa da segunda volta das presidenciais, no confronto entre Mário Soares e Freitas do Amaral. Neste sentido, além de uma sociedade estereotipada, temos uma sociedade bipolarizada politicamente entre esquerda e direita, onde até os comunistas, já derrotados, se vêm obrigados a votar no sacana do bochechas para evitar a vitória de uma direita que não toleravam. Eduardo, pai de Tiago, e Fernando, pai de Marta traduzem esta divisão; sendo personagens impulsivas, cujo temperamento é determinado pela vida política, os seus papéis podem, facilmente, ser considerados exagerados e despropositados, mas não nos esqueçamos da arma humorística adotada pelo argumentista.
Considerando o cenário e as personagens já descritas, a escolha do tema política como mote da série revela-se atípica e até arriscada para um Portugal que, atualmente, teima em esquecer os valores democráticos que tão recentemente conquistou. Facilmente se superou este risco e se alastrou, pelo país, uma vontade de reviver memórias da época onde a ânsia de viver a liberdade ainda corria pelas veias dos portugueses; liberdade esta que Markl, na série, tanto retrata através das disputas ideológicas e políticas intensas como das canções do Sérgio Godinho.
As referências são inúmeras e, através delas, pode reconstruir-se a década de 80 com base nas suas principais caraterísticas. Desde as saias plissadas à moda dos blusões de ganga e das calças de bombazine, à alusão aos filmes de Andrey Tarkovsky e de Woody Allen, passando pelas canções dos The Smiths e por sítios emblemáticos da noite de Lisboa, como o Frágil, parece-nos que aquilo que mais marcou as gerações não escapou à série. Numa das melhores cenas, discute-se, ainda, as marcas das pastilhas elásticas. Acima de tudo, retrata-se uma sociedade que, no lugar do desejo por telemóveis e computadores, tinha a vontade de acumular cassetes de filmes e vinis; esta é uma sociedade onde as pessoas se reuniam para ouvir o novo álbum ou a nova produção de um artista, caraterística que concedia ao cinema ou à música uma valorização que a geração do Spotify e do Youtube dificilmente poderá sentir.
Claro que todo este imaginário de Markl ganhou vida, apenas, quando, a seu lado, se juntou o realizador Henrique Oliveira, passados anos da ideia ter estado arrumada na gaveta. A contribuir para o seu bom desempenho, estão todos os atores, como Miguel Moura e Silva no papel de Tiago, Laura Dutra como Marta, Miguel Partidário a representar Sérgio, Eva Fisahn como Patrícia e muitos outros sobre os quais os papéis assentam, igualmente, de forma fantástica.
Termino destacando o trabalho que artistas portugueses, como Lena D’Agua, João Só, David Fonseca, entre outros, realizaram ao nível da banda sonora. Na música que inicia o álbum e que, igualmente, abre os episódios podemos ouvir “estamos aqui, neste fim do mundo, dizem que é na Europa unida. Estamos aqui, presos por um fio, mas ninguém nos desliga da ficha“. Estas simples frases representam aquilo que é esta série: um reviver de memórias de gerações que tinham vontade de viver intensamente a vida política do país e a liberdade, que ansiavam absorver tudo o que conseguiam da realidade cultural, num país atrasado tecnologicamente e com uma elevada taxa de analfabetismo, onde a esperança de prosperidade e de progresso socieconómico era alimentada com a entrada na Comunidade Económica Europeia. 1986 é, assim, um retrato daquilo que foi uma época peculiar e que é, em 2018, trinta e dois anos depois, uma época desejada por aqueles que a viverem, sonhada pela geração que a seguiu.