A literatura e o tempo
Crescemos na narrativa das histórias, as que ouvimos, as que sentimos, as que vimos e as que lemos. Nada acontece fora de uma linha cronológica, mesmo que não tenhamos a consciência disso. Mas ainda que partilhemos com os outros animais a capacidade física de sentir o tempo, a percepção do mesmo varia de humano para humano, conforme a experiência da passagem do tempo se desenvolva em cada um de nós.
Esta condição de percepção é variável porque todos entendemos e usamos a memória de diferentes formas, e, quando se fala de tempo, cada um de nós recorda os acontecimentos em diferentes estilos. Para além da forma como armazenamos as memórias no tempo, também esta percepção se modifica se a partilharmos com outra pessoa. O tempo é inconstante, depende da velocidade em que é sentido, das emoções que carrega, das texturas em que é percebido e das formas em que caminha. A verdade é que não entendemos o tempo só por um sentido ou sensação, mas fazemo-lo de diversas formas combinadas. Para além da complexidade que este conceito abstracto acarreta, não é só dos acontecimentos que o tempo vive, mas também da relação entre os acontecimentos, sejam eles no passado, presente ou futuro.
O tempo é, portanto, um elemento omnipresente, componente inseparável da existência, e sobejamente representado na literatura desde o seu nascimento, como não podia deixar de ser. Não seríamos capazes de entender uma narrativa sem tempo, e a literatura só se desenvolve e se desmultiplica através das inúmeras formas de desenvolver e assimilar o tempo, seja este o entendido pelo escritor, pelo leitor, ou pelas personagens dentro da própria narrativa.
A forma como a narrativa trata o tempo também torna a literatura algo bastante singular, tornando o tempo ainda mais complexo. Falamos do tempo cronológico, do tempo psicológico de cada personagem (tempo individual), das tão conhecidas analepses (recuo ao passado), das prolepses (avanço no tempo), das elipses (supressão de espaços temporais) e do próprio tempo da história e do discurso.
Para além das diferentes formas de usar o tempo para contar uma historia, existem também outros elementos essenciais, como qual a época temporal em que o autor escreveu a história, ou qual o tempo em que o narrador conta a história, ou no qual acontece a história ou ainda qual o tempo em que o leitor a lê.
Todos estes componentes alteram a forma como experienciamos o tempo e, o mais incrível de tudo, uma mesma narrativa pode ser sentida de milhões de formas. O tempo da minha imaginação normalmente não coincide com o tempo da imaginação dos outros e nunca será igual ao tempo da imaginação do autor quando escreveu a narrativa. Posso me identificar, por exemplo, com a forma como uma personagem vive o seu próprio tempo psicológico, pensando que a personagem se manifestou em quase todo o livro, e descobrir mais tarde que na realidade a personagem não apareceu assim tantas vezes no percurso da narrativa. Ou seja, a duração do tempo também varia, nós modificamos a duração de cada memória, dependendo do nível emocional em que estamos envolvidos.
O tempo torna-se mais lento, uma espécie de slow-motion, quando algo invade o nosso espaço físico ou psicológico. Contudo, o tempo é mais rápido quando tudo se move. Não nos cansamos do tempo, mesmo que ele seja intocável e invisível, continuando a ser um grande mistério da natureza e a regular a nossa vida diariamente.
No clássico Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, desenvolve-se a história de Raskólnikov, que, após cometer um crime, se fecha no seu quarto. É de tal forma complexa a vida psicológica da personagem que a percepção do tempo se começa a manifestar de forma mais lenta, acabando nós por entendê-la de forma mais extensa, ou seja, ao longo de mais tempo, embora ela na realidade se passe num espaço de curta duração. Tudo isto acontece de forma tão prolongada porque já nada se move, ficamos no espaço temporal dos seus pensamentos e no aprisionamento das suas emoções. Todo este tempo se torna doloroso, espaçado e demorado.
Se Dostoiévski fez isto no século XIX, na literatura do século XX começaram cada vez mais a utilizar-se diferentes formas de tempo, desde a desfragmentação ao uso de narrativas não lineares, da distorção do tempo a muitas outras. Podemos encontrá-las em autores como William Burroughs, James Joyce, Virgina Woolf, Kafka e Faulkner, mas também Beckett e Nabokov.
No pequeno conto Time and Ebb, de Nabokov, por exemplo, temos uma clara exploração do tempo na história de um paciente de 90 anos (que ninguém esperava que sobrevivesse) que resolve jogar às cartas. Um jogo que exige muita paciência e alguma memória, é aqui neste limbo entre a falta de imaginação e a má memória que o tempo se começa a manifestar. Fala-nos da idade e de quão rápido ela passa, mas também de como é diferente a memória dos acontecimentos que ocorrem brevemente (como quando esquecemos um chapéu de chuva), se comparados com quando recordamos a infância e todos aqueles detalhes que parece que aconteceram hoje. E sem nos apercebermos passamos a recordar quase um século de memórias, tendo em conta que nem todas se perderam no tempo da história nem no tempo da personagem.
O tempo não aparece apenas na prosa, mas também na poesia, como em Cancioneiro, de Fernando Pessoa:
“Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens.”
Pessoa trata o tempo como algo que marca sempre a sua presença, mesmo que não a queiramos: temos o tempo de fora e o tempo de dentro e quão diferentes estas duas percepções são.
No poema O andaime, encontramos também referências sentidas em relação às passagens temporais da vida e das emoções das mesmas.
“O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
poema não digas nada, o andaime…”
Walt Whitman explora também esta ideia abstracta, focando-se no tempo para desenvolver grande parte da sua poesia. Passa-nos a ideia de que o tempo do passado, presente e futuro é um só, e não se separa de forma distinta e individual, tudo esta interligado, como podemos ler em Leaves of Grass:
I accept Time absolutely.
It alone is without flaw,
It alone rounds and completes all,
That mystic baffling wonder.
O mesmo entre aqueles clássicos que tornam a literatura em algo tão cativante que fica no pensamento pedindo-nos por mais, como é o caso J.R.R. Tolkien’s com The Hobbit, onde o tempo é sentido como algo que nos invade e nos corrompe, a quem ninguém passa ao lado, ou o engana ou o conquista, pois somos todos fruto do tempo, seja ele quem for:
This thing all things devours,
Birds, beasts, trees, and flowers.
Gnaws iron bites steel,
Grinds hard stones to meal,
Slays king, ruins town,
And beats high mountain down…
Para terminar os exemplos na literatura sobre o tempo, eis Marcel Proust com o livro À la recherche du temps perdu, um livro bastante peculiar pela forma inconstante que trata o tempo. Proust ignora quase completamente a linearidade dos acontecimentos, fala-nos do passado e presente como se fossem o mesmo, ou como se tivessem na mesma linha de ideias.
Procuramos o tempo perdido, mas até que ponto conseguimos perceber o passado, aquilo que ficou no tempo? Conseguiremos, como seres humanos, reescrever um passado que não existiu, conseguiremos até, em forma de defesa, criar uma falsa percepção de que sabemos tudo sobre o nosso passado, e sobre toda a relação temporal entre os acontecimentos?
Marcel traz também uma ideia bastante renovadora que nos fala da evolução da linguagem, e como esta também serviu para a modificar o tempo nas narrativas. Só através da palavra (no caso da literatura) é que o entendimento do tempo se altera. As palavras trazem-nos emoções e são estes elementos que nos ajudam a sentir o tempo de forma mais lenta ou mais rápida.
A ideia filosófica mais importante que sobrevoa todo o livro é como o tempo passa por nós tão despercebido, não damos por ele, mas porquê? Segundo Alain Botton, esta rápida travessia pelo tempo deve-se a não estarmos completamente sintonizados com o mundo que nos rodeia, havendo uma forte tendência para estarmos constantemente perdidos no nosso próprio tempo.
O nosso relógio próprio não é o relógio de mais ninguém, entendemos este conceito de tempo de forma individual. Proust leva-nos na narrativa, e anda para a frente e para trás, parando muitas vezes na consciência de pensamentos que se achavam perdidos na memória do tempo. Mas onde podemos perceber melhor todo este conceito é quando Marcel dá uma dentada numa madalena. Molha a madalena no chá, e de repente voltam uma série de memórias de infância, tudo de forma bem lenta, cheia de tempo e sensações, onde tudo passa a ser regido não pelo tempo físico, mas sim pelo tempo da sensação que a madalena provoca. “A emblemática madalena de Proust” tornou-se bastante conhecida como um conjunto de experiências sensoriais que emitem uma série de memórias involuntárias, e tantas coisas há que se activam involuntariamente, fazendo com que entendamos o tempo como algo diferente, como uma extensão continua de vivências.