Paredes de Coura 2018 (dia 1): mosh, crowdsurf e música que nos transcende
O primeiro dia de Paredes de Coura é marcado por uma característica: é que o campismo, aberto desde sábado (dia 11 de Agosto), torna-se charneira de um espírito e expectativa que cresce de dia para dia entre as gentes que ocupam as margens do rio Coura. E esse espírito quer explodir logo à primeira oportunidade. Talvez por isso tenham sido especialmente felizes as escolhas de King Gizzard and the Lizard Wizard e dos Linda Martini para a primeira noite do festival. A panela de pressão descomprimiu, ao som de muito boa música.
Coube aos Grandfather’s House a tarefa de abrir o primeiro dia da 26.ª edição do Vodafone Paredes de Coura. Após um importante concerto para a banda neste mesmo festival em 2016, a aposta neles continua, desta vez com este lugar de destaque, cujo mote terá sido a apresentação do mais recente álbum, Diving. Intercalando entre synthpop mais minimalista e uns blues com direito a riffs pesados, a música destes bracarenses retém sempre uma aura negra, materializada nas roupas escuras que os membros ostentam ao vivo. O híbrido entre estas duas sonoridades algo díspares acaba por ser algo desconcertante e parece fora de lugar para um final de tarde, quando se pedia talvez algo mais descontraído. Apesar disso, os Grandfather’s House demonstraram as suas boas intenções com um concerto competente. A vocalista Rita Sampaio urge a que desfrutemos do festival e é então com essa máxima que nos comprometemos.
Com o sol já a esconder-se por detrás das árvores e a sua luz a passar filtrada pelos espaços entre as folhas, o recinto adquire um brilho dourado que serviu de pano de fundo à estreia de Marlon Williams em Portugal. O neozelandês entra sozinho em palco e começa com uma belíssima versão acústica de “Come to Me”, que não poderia ser mais adequada ao ambiente bucólico de Paredes de Coura. O público reconhece isso com fortes aplausos e o músico agradece de forma vigorosa, contrastando com a música delicada que acabou de tocar, revelando uma personalidade carismática que contribui para que o concerto seja um enorme sucesso. A banda que o acompanha, os Yarra Benders, entra então em palco para auxiliar Williams na tradução da sua mistura de alt-country, folk e bluegrass ao vivo.
Belas melodias de guitarra, harmonizações vocais com a banda, a figura esguia do artista que se abana ao sabor das suas próprias canções; tudo contribui para que as canções não caiam na redundância do seu género. No entanto, a característica que mais eleva Marlon Williams é a sua fabulosa voz: de timbre clássico, lembrou-nos de Benjamin Clementine, artista que também brinca com a sua voz de forma quase teatral. A música mais agitada do seu repertório – “Party Boy” – entusiasma e põe o público a dançar, mas é “Nobody Gets What They Want Anymore” que arranca mais louvores do público. De cigarro na boca, o artista exala palavras envoltas em fumo, numa pose decididamente cool, que certamente terá convencido a audiência já bem composta. Mais um nome para as boas surpresas que este festival já nos apresentou.
O primeiro concerto com direito a céu estrelado por cima das nossas cabeças foi o dos portugueses Linda Martini. A banda, mais que aclamada entre o meio alternativo português, deu um concerto à altura do lugar que lhe foi dado no cartaz. Percorrendo os clássicos e os temas do mais recente álbum, originaram mosh em abundância entre as plateias da frente. Embalando-nos no seu imaginário poético rico e envolvente, puseram o público a repetir os refrões – apresentados quais mantras – com intensidade e entrega. Enquanto se cantava “és presa ou predador?”, assistiu-se ao início do primeiro crowdsurf da noite, com dezenas de fãs a serem transportados no ar até aos seguranças da fila da frente. Estes viriam a ter muito trabalho ao longo da noite. A banda estava visivelmente emocionada no final do concerto. Os Linda Martini são importantes, e o público do Paredes fez questão de o voltar a mostrar aos artistas.
Mal a parafernália de palco dos Linda Martini é retirada, a banda mais aguardada do dia entra em palco para os próprios elementes da banda fazerem soundcheck final, numa atitude descontraída e de amor à música e aos seus fãs, com quem vão brincando através de pequenos snippets sonoros. Os King Gizzard and the Lizard Wizard pareciam logo prontos para começar o concerto, mas a organização impera e é à hora marcada que começam então a tocar. E como as expectativas nem sempre são goradas, o que se esperava aconteceu mesmo: moches e crowdsurfing intermináveis, mas sempre com um espírito de camaradagem e uma satisfação manifestada pelo sorriso nos lábios dos membros da audiência, encharcados em fluidos corporais. Deixámo-nos levar pelo fluxo de gente e vimos coisas como um senhor sexagenário deliciado no meio da confusão, óculos partidos e tréguas para atar cordões; sentimos libertação.
O septeto australiano observava impassivamente o caos por si criado, fornecendo-nos a sua música progressiva e psicadélica, que não abusa da distorção ao vivo, contando com dois kits de bateria para potenciar movimento. Os seus riffs soam concentrados, depurados em melodias brincalhonas que evocam cor e movimento; talvez por isso sejam aumentadas pelas imagens psicadélicas que a banda projecta atrás de si. “Rattlesnake”, a longa canção que parece uma viagem por um deserto de videojogo, entusiasma o público, que acompanha as vozes tanto demoníacas como melódicas dos vocalistas. Apontamentos electrónicos povoam “Crumbling Castle”, em regime pára-arranca, suscitando ainda mais energia a cada arrancada do ritmo apressado. No final, a banda despede-se com carinho deste festival que os vê regressar ao fim de apenas dois anos e o público fica a entoar a melodia de “People-Vultures”, clamando por um encore que acaba por não vir.
Os The Blaze são uma das bandas sensação da electrónica neste momento: ainda sem nenhum álbum lançado, ocuparam lugar de destaque no horário do Paredes de Coura. Deram um concerto de certa forma intimista, com umas portas que se abriram após o primeiro tema, é que revelaram um pequeno cubículo espelhado em que os dois produtores se olhavam de frente, comunicando e dançando, seguindo o impulso que eles próprios accionavam na sua música. À base de repetições e apontamentos curiosos, a performance fluiu sem nunca verdadeiramente ter chegado a levantar vôo, embora alguns momentos de baixo tenham sido particularmente fortes. O público, pela encosta acima, balançava-se animadamente. E no final as portas fecharam-se. Fica-nos na memória a alegria dos The Blaze, estampada nas caras do duo. Ficamos a aguardar com alguma expectativa o álbum de estreia do grupo, que chegará já no próximo mês.
Encerrado o palco principal, caminhamos até ao palco Vodafone FM, onde decorreria a after party. A multidão que já lá estava comprova o hype que Conan Osiris conseguiu reunir entre o grande público ao longo dos últimos meses. “Conan, Conan, Conan!”, ouvíamos gritar, tanto no início como no fim do concerto. O cantor e produtor português subiu irreverentemente ao palco (como sempre), ao som dos criativos e estimulantes beats que dão corpo à sua música. A mistura – algures no cruzamento entre o fado, a electrónica, o funaná e sonoridades de leste e orientais – constitui algo de novo. Como a crítica do Público ao mais recente álbum afirmou: nunca ouvimos nada assim. E é verdade. A metade do público a quem os sons de Conan entra nas veias, dançou sem medo as emoções estranhas que ali moram; e a parte da plateia a quem o estranho imaginário pouco ou nada incomoda, manteve-se serena e atenta (de braços cruzados ou não). Difícil é ficar-se indiferente. Houve tempo para dois temas novos: um sobre baralhos de cartas, é outro sobre milagres, ambos com uma sonoridade já ligeiramente diferente, menos “étnica” e mais assumidamente electrónica. A carreira de Osiris segue a alta velocidade – vamos ver onde nos leva.
Para fechar a noite, o santo da casa Nuno Lopes deu música aos presentes até altas horas da manhã, em formato DJ set, num registo clubbing que incluiu até um remix de “Time”, dos Jungle, que hoje actuarão no festival. A eles juntar-se-ão nomes como Fleet Foxes, Surma ou Japanese Breakfast (com quem, ao que parece, a Comunidade Cultura e Arte terá a oportunidade de conversar). Até lá, é tempo de descansar.
Reza ainda a lenda que a caminho do campismo nos cruzámos com dois membros dos King Gizzard, que se encontravam perdidos (em mais do que um sentido da palavra) a caminho do backstage, até ao qual os guiámos. Apenas mais uma das muitas histórias que se vivem ao longo destes dias em Paredes de Coura.
Texto escrito por Bernardo Crastes e Tiago Mendes.