Paredes de Coura 2018 (dia 4): casa cheia, coração cheio
Tudo o que é bom, acaba. Felizmente, há finais que têm regressos prometidos. O último dia do Vodafone Paredes de Coura foi o único cujos bilhetes diários esgotaram – talvez por isso se sentisse entre o público uma maior mistura de estilos, idades, e atitude. Mais famílias, mais roupa produzida e maquilhagem, de quem veio chamada por uma das maiores bandas de referência dos últimos quinze anos: Arcade Fire. Mas a curadoria musical do dia não ficou comprometida apenas por esse grande nome – numa viagem por diversos estilos musicais, houve tempo para outras emoções, bem distintas, num todo harmonioso que uniu os diversos públicos. Afinal de contas, o ecletismo nunca chegou a ser posto em causa. E em Coura é sempre bem recebido.
Chegamos ao recinto ao som de Myles Sanko, que já apresentava a sua soul revivalista e descomprometida, na senda de outros contemporâneos como Michael Kiwanuka ou Gregory Porter. A sua voz forte tem aquele arranhar característico da soul que acompanha bem as arrancadas dos instrumentos de sopro da sua banda. O concerto é marcado por inúmeros apelos ao amor: de como Myles o quer sentir da nossa parte ou de como nós o devemos sentir entre nós. Enfim, era um espectáculo designado para nos fazer sentir bem, como o demonstram canções como “Sunshine”. O público reagiu bem, chegando mesmo a levantar-se do conforto da encosta quando o artista pediu e a abanar-se ao som das canções mais agitadas. Honestamente, quem viu um concerto deste género, viu quase todos, mas é sempre uma boa aposta para levantar o espírito do público.
Num extremo quase oposto, temos o post rock distorcido dos portugueses Dear Telephone, que subiram ao palco Vodafone.FM logo a seguir. A banda apresentou maioritariamente canções do mais recente álbum, Cut; como “Nighthawks”, uma slow burner em crescendo. A vocalista Graciela Coelho vai-se bamboleando sedutoramente e cantando com a sua bonita voz, com uma expressão séria. O público está algo disperso e não parece muito entusiasmado, mas mantém-se fiel a ouvir os ritmos seguros, teclados insistentes e ascensões sonoras da banda. Foi um concerto competente, mas talvez algo frio.
Chegava a vez de Curtis Harding no palco principal. A relva, colina acima, estava já bastante lotada. Convinha reservar lugar para a banda que chamará multidões a Coura. Notava-se que o recinto estava mais cheio que nos dias anteriores, mas nem com o espaço esgotado Coura deixava de fluir. Curtis entra em palco com óculos extravagantes, mas a música que apresenta, num cruzamento entre a soul e o rock, não levanta voo. Balançam-se os corpos, sorri-se, e Curtis Harding assume-se como um bom entertainer, embora falte alguma faísca às composições algo formulaicas do músico. Myles Sanko, no concerto anterior, fora capaz de convocar mais brilho e calor. Ainda assim Harding proporciona a todos os presentes uma tranquila passagem da tarde para a noite.
De seguida, deu-se o regresso a Portugal de um dos mais queridos compositores brasileiros contemporâneos, Silva. Entrando ao som da desconstrução da tropicália feita por Gato Barbieri, o artista começou o concerto com “Nada Mais Será Como Era Antes”, a esparsa canção que abre o mais recente Brasileiro. No início, as canções seguem-se com um foco no teclado loungy de Silva, ao estilo de conterrâneos como Azymuth ou Marcos Valle. “Caju”, aqui com um ritmo mais pesado e sopros fortes, foi bastante bem recebida pelo público, que, de resto, se deixou embevecer pelas bonitas canções do brasileiro ao longo de todo o concerto, mesmo não respeitando tanto os momentos mais silenciosos. Passamos por vários géneros e andamentos diferentes, incluindo o reggae ou a bossa nova, com a constante da voz doce de Silva, que nos diz coisas tão bonitas como “Eu quis tanto ter você, quando você não me quis”. Uma verdadeira delícia.
O concerto seguinte do palco principal foi talvez um dos mais sui generis de todo o Paredes de Coura. Isto é, talvez tivesse passado despercebido à maioria dos presentes noutro horário ou noutro contexto, mas a colocação dos Big Thief em horário nobre no único dia esgotado do evento acabou por se tornar uma bênção para a banda. Adrianne Lenker, o rosto e a voz do colectivo americano tremia de nervosismo. Havia motivos para isso, porque a estreia dos Big Thief em Portugal ia ficar marcada por dois factos: tratava-se de maior plateia para quem a banda alguma vez tinha tocado; e o segundo guitarrista da banda, Buck Meek, não estava em palco. Foi Lenker que teve de assumir todo o trabalho de guitarra, pelos dois. Fê-lo de uma forma incrivelmente bela e delicada – as duas ou três falsas partidas, a que reagia com risinhos nervosos e sem tirar o olhar do chão, punham a nu a frieza de uma banda que era obrigada a adaptar o seu espectáculo de improviso, logo diante do seu maior público até à data.
Felizmente quem os ouvia fazia questão de aplaudir intensamente, dar gritos de apoio, enviar amor para cima do palco. Lenker respondia à altura. Com voz baixinha e nervosa, elogiava as primeiras impressões que tivera do país. E aproveitou a oportunidade para colocar uma questão ao público, de uma forma absurdamente sincera, que deixou a audiência sem reacção: “Haverá aqui alguém, por acaso, que tenha alguma memória do seu próprio nascimento?”. Lenker estava sedenta de contacto com as pessoas que a ouviam. Desceu à plateia para ler mais de perto os cartazes, porque não tinha consigo os óculos.
Mas falemos de música: os temas dos dois álbuns de estúdio, Masterpiece e Capacity, foram os que mais mexeram com o público. No entanto, os Big Thief trouxeram, ainda, na bagagem outras canções ainda não editadas, de entre uma vasta montra de temas que costumam rodar nos seus espectáculos ao vivo. Com uma interpretação experimental e emotiva – prolongamentos excessivos da guitarra, momentos de voz no limite – os três conquistaram o público, num espectáculo não convencional que flutuava sob a beleza das composições. Exige-se um rápido regresso dos Big Thief, agora em contexto mais minimalista: é que a uma banda desta suavidade e de faceta tão genuína, não se exige uma sequência de canções encadeadas e nos timings certos. Há que dar tempo e lugar à estranheza, absorvê-la, e às propostas de Lenker. Venham elas.
Antes de nos plantarmos em frente ao palco principal para o evento da noite, houve ainda tempo para ir espreitar o concerto de Yasmine Hamdan. Os ritmos lânguidos e sérios da artista libanesa não nos entusiasmaram muito e fizeram-nos pensar que talvez a artista devesse ter tocado à hora de Silva. Não que as canções de estilo trip hop da artista não sejam boas, mas aquela hora pedia algo mais pujante ou pelo menos mais caloroso. A voz processada da artista também criou alguma distância e deixou uma sensação diferente daquela que ficou após o concerto que a artista deu no NOS Primavera Sound em 2015, que vimos debaixo do Sol e nos agradou bem mais.
Depois, no palco principal, os Dead Combo apresentaram o seu híbrido de rockalhada e “fadalhada”, à boa maneira a que a banda já nos habituou. No entanto, o seu concerto foi menos interessante que outros que temos em recente memória, talvez devido ao espaço maior e à antecipação pelos cabeças-de-cartaz. Tó Trips, Pedro Gonçalves e companhia passaram por canções como “Rumbero” e “Cuba 1970”, assim como pelo eterno ponto alto dos seus concertos – a emotiva “Esse Olhar Que Era Só Teu”. Perto do final do espectáculo, chamaram o convidado especial, alguém que a banda admira bastante: Mark Lanegan. A colaboração abrandou o concerto, resultando numa componente instrumental menos cativante que as canções apresentadas então, de modo a dar espaço à voz grave de Lanegan. Acabou por ser mais um apontamento interessante em teoria do que realmente um momento inesquecível do festival. O final deu-se ao som da incontornável “Lisboa Mulata” e o público aqueceu as pernas para o que se seguiria.
É inegável que os Arcade Fire sejam uma das maiores bandas alternativas do mundo. É também por isso que se torna ainda mais especial assistir ao seu regresso a Paredes de Coura após 13 anos, altura em que se apresentaram neste mesmo local, imberbes e sem saber o que o futuro lhes reservava. Foi um concerto que reside numa espécie de imaginário colectivo dos fãs portugueses, que o viveram sem realmente o ter vivido, tendo agora a hipótese de o materializar mais fielmente. Mesmo que os Arcade Fire de agora não sejam os mesmos de então – são uma versão mais polida da banda, talvez mais inacessível – ainda assim, ligam-se genuinamente ao seu público através dos concertos, em que são dinâmicos, olham, sorriem, rejubilam e vivem. É por isso que é sempre um prazer revê-los.
Os Arcade Fire dos dias de hoje fazem uma festa diferente, mais descomprometida, materializada logo na primeira canção do concerto, a massiva “Everything Now”. O público saltou, trauteou a melodia instantaneamente reconhecível, gritou a letra e sentiu-se instantaneamente aquele formigueiro que a música da banda transmite. Para quem o último álbum não encheu as medidas, a banda fez questão de dar seguimento ao espectáculo com a terceira das “Neighborhood”‘s, “No Cars Go” e a extremamente emotiva “Rebellion (Lies)” – canção que nos incute um espírito adolescente, assente na titular rebelião que sai de nós pela dança e por uns dos versos mais pungentemente reconhecidos da música indie. As canções ganham uma outra vida ao vivo, como “Electric Blue”, em que o falsetto de Régine Chassagne soa mais vivo e a melodia mais cheia.
A partir daí, seguiu-se uma viagem cronológica, começando com “Cars and Telephones”, uma das primeiras canções que Win Butler escreveu quando se mudou para Montréal, ainda antes de conhecer alguns dos seus companheiros de banda. De álbum em álbum, fomos tendo uma janela para cada um deles, umas maiores que outras. De Neon Bible, deram-nos “Intervention”, uma canção já de si forte, que aqui teve uma aura de nostalgia entusiasta. Da era The Suburbs, álbum da adolescência de muitos dos presentes, foi “Ready to Start” a canção que mais entusiasmou o público, se bem que “Sprawl II” ainda é aquela que faz os corações bater mais depressa e as luzes apagar-se sob o jugo da sempre maravilhosa Régine.
O ritmo dançável desta última passou para a fase Reflektor, com a canção-título – em que Régine se colocou atrás da régie, aproximando-se do público mais afastado do palco – e ainda a épica “Afterlife”. O apogeu veio com “Creature Comfort”, canção intensa que evoca o passado da banda e encapsula a sua energia tão característica. Despedem-se temporariamente, mas toda a gente sabe que não podíamos deixar de ter direito a ouvir “Wake Up” ao vivo – canção sempre inspiradora, perfeita para terminar concertos, deixando sempre a sua melodia nos lábios e corações de quem acabou de ver um concerto dos Arcade Fire. E assim foi o que aconteceu. As despedidas são demoradas e emotivas, ao som de um outro de “Walk on the Wild Side”, e sentimos o coração cheio. Até breve.
Dos Ermo apanhámos o fim, depois de termos demorado a atravessar o recinto após o término de Arcade Fire. Mas a sua electrónica estonteante embalava o corpo de quem se expunha a tamanho trabalho. É emocionante ouvirem-se no meio de todos aqueles sons e camadas extravagantes palavras em português, frases que não estamos habituados a ouvir com aquelas frequências de fundo. O som dos Ermo é diferente, é autoral, e pelo que tivemos oportunidade de ouvir, provou mais uma vez ser capaz de ocupar o espaço e tempo de uma maneira conquistadora.
Nesse sentido, o som dos Ninos Du Brasil foi um natural epílogo, um digno concerto de despedida (antes do último set de DJ Kitten) desta edição do Paredes de Coura. Os ritmos desarmantes do duo de electrónica deixaram poucos pés no chão. Na sua estranha mistura de música carnavalesca, do samba, da batucada, com os baixos alucinantes da electrónica house, angariaram a atenção de um público surpreendido a cada tema – que mais sequências rítmicas serão possíveis? Onde nos levava cada recanto do duo? Uma experiência intensa e que não deu tréguas a quem ainda tinha os últimos cartuchos para gastar.
Para concluir o festival, João Vieira, dos X-Wife, voltou a subir ao palco em Paredes de Coura, desta vez sob o epíteto de DJ Kitten. Passando por uma longa lista de crowd pleasers (Tame Impala, Death Grips ou até Justin Timberlake), o set elevou os espíritos daqueles que não quiseram dar o festival por terminado tão cedo.
Ao longo destes dias, vimos inúmeras t-shirts de diversas edições do festival, num espelho da devoção do público português por este certame tão característico. A soma da música, da imersão na natureza, da camaradagem entre festivaleiros e da simbiose com a vila é maior que as partes, resultando numa experiência única que se tem renovado em cada uma das suas 26 edições. De 14 a 17 de Agosto de 2019, teremos a oportunidade de a viver de novo. Até então, Paredes de Coura.
Texto escrito por Bernardo Crastes e Tiago Mendes.