Fim do Prólogo de Flamignon
Este vento é terrível, pensava o nosso herói enquanto passava um pano sobre as mesas de metal que fazem esplanada do quiosque onde trabalha, ali no jardim da Parada, a dois passos de sua casa. Eram oito da manhã, e Flamignon preparava tudo para a chegada dos clientes. O vento insistia em desgrenhar cabelo e roupa a este jovem que sobre o vento terá outrora pensado coisas nobres. O som das folhas nas árvores mexidas pelo vento forte nunca agradou Flamignon, e a ideia de inverno que este tempo provoca, traz uma nostalgia que só pede manta, uma caneca cheia de qualquer coisa quente, janela, uma lareira, e nada para fazer. Enquanto limpa as mesas, Flamignon antecipa o momento em que entrará no quiosque como no mais exclusivo chalé. Em dias como este, qual a razão para trabalhar num lugar que só tem esplanada? Haverá quem se não importe de tomar café fustigado pelo vento? Até os velhos nas mesas onde normalmente jogam dominó parecem olhar espantados para Flamignon: que rapaz empenhado, pensariam se não conhecessem já os hábitos de Flamignon e não comentassem entre si que já não se faz gente como antigamente, e que o miúdo havia de ser meu neto, que eu o ensinava a trabalhar.
Alimenta todo o género de esperanças saber que até uma tarefa desagradável tem fim. E, tendo terminado na esplanada, Flamignon entrou para o quiosque, esfregou as mãos, e começou a preparar uma chávena de café para si. Olhou para o relógio: ainda teria vinte minutos até abrir a janelinha do quiosque. Por enquanto estavam fechados, e o rapaz havia de tirar o café com método, conseguir para ele tudo o que aqueles pobres grãos tinham para dar. Talvez o som do vento se tornasse discreto com o tempo, estava abafado pelas paredes do quiosque que, apesar de finas, sempre protegem qualquer coisa. Mas deveria haver algo, um ramo, um objecto solto, que batia contra a pequena construção e fazia um som com presença, um sistematicamente repetido som como quem bate. Debruçado sobre o café em pó, Flamignon imagina esse algo para reconhecer que o vento não pode ser. Sem interromper a atenção, Flamignon pensa: será gente? E ao pensar jura que ouve, abafado, o seu nome. Volta-se e vê: do lado de lá da janela está um rapaz feito saco ao vento: o cabelo todo no ar, o casaco insuflado, a mala a tiracolo. Era ele quem batia. Ao reconhecer a atenção de Flamignon, sorri e acena. Que parvo, pensa Flamignon, que cara de parvo. E o que quererá? Flamignon abre a janela.
– Bom dia Flamignon.
– Bom dia Guilherme.
– A Marta está?
– Ainda não.
– Ah! Boa. Trago-lhe uma coisa, podes entregar?
– Claro.
– Obrigado. Isto é que está um vento.
O rapaz tira da mala uma folha dobrada e um pequeno pacote de gomas, entrega a Flamignon.
– É isto.
– Ok. Queres que diga alguma coisa?
– Não, não. Basta entregar. E isto é para ti, para agradecer.
E o rapaz tira mais um pequeno pacote de gomas.
– Ah, obrigado.
– Um bom dia, Flamignon.
– Um bom dia, Guilherme.
Ele vai-se, Flamignon fecha a janela, abre o seu pacote de gomas, e vê-o, enquanto come, afastar-se parecendo dar saltos ao caminhar. Quando já não se via Guilherme, Flamignon desdobrou a folha, e leu
Querida M.,
Em jeito de telegrama: coisas importantes a dizer. Stop. Sei que tens aulas hoje, vem ter comigo depois: às 18h30 espero por ti no Rossio. Stop. Até já.
Flamignon sabia que entre Guilherme e Marta havia, pelo menos, a promessa de um romance. Deduziu, treinado que estava no pensamento lógico e cartesiano, que o miúdo se fosse revelar a Marta como ser apaixonado. Tudo bem, mas agora o que importa, e já não há muito tempo, é o café. Meteu o papel no bolso, as gomas também, e voltou-se para trás.
Marta só chegou a meio da manhã. Que o comboio teve um problema, esteve mais de quarenta minutos parado em Campolide. Desculpa, Flamignon. Mas o rapaz não queria saber, não tinha havido ninguém até agora. Avançou cinquenta páginas na MONTANHA MÁGICA, é o que é. Ainda bem, dizia ela, enquanto vestia o avental e se preparava com tanto empenho como se da esplanada gritassem os clientes que queriam ser servidos. Ali no quiosque, em dias assim não havia que fazer. Por vezes falavam, outras vezes ficavam em silêncio, cada um metido na sua vida, ou distraído com o que houvesse: os dois liam bastante. Marta aproveitava, muitas vezes, para estudar. Estava no terceiro ano do curso de medicina, e era espantoso aos olhos de todos como conseguia conciliar estudo e trabalho. Grandes esperanças depositavam nela todos os que dela sabiam alguma coisa.
Quase à hora de almoço, Flamignon lembrou-se do bilhete. Olhou para Marta, ela estava debruçada sobre umas fotocópias sublinhadas. O cabelo caindo sobre a cara. Hesitou. A imagem de Guilherme ao vento apareceu-lhe na memória como coisa pouca. Flamignon decidiu que não diria nada. Não ia cumprir o pedido do rapaz. Haviam de o confrontar com isso, pensou. Inventará uma desculpa: o bilhete voou, esqueceu-se de o entregar, lamentava muito. Tinha curiosidade para saber como se resolveriam os dois: ficaria Guilherme a pensar que Marta não quis aparecer, que se assustava com a possibilidade que o bilhete levantava? Com certeza, havia de duvidar quando ela lhe dissesse que não tinha recebido nada. E o que teria acontecido às gomas? Será que Flamignon comeu os dois pacotes? Uma tempestade instalada por Flamignon, que a imaginava com uma nitidez tão grande como via o vento lá fora. E eis que alguém bate à janela. Se dá para almoçar. Um hambúrguer clássico. Com certeza. O primeiro cliente em condições de hoje, se retirarmos da equação os três que já por aqui passaram para tomar café. É Marta quem recebe o pedido, Flamignon prepara, leva o hambúrguer à mesa, e imediatamente se arrepende.
– Mon ami, Flamignon!
– Professor.
– Não o sabia por aqui.
– É verdade.
– Mas trabalha no quiosque?
– Assim é.
– Não é o primeiro aluno que encontro a trabalhar num destes lugares. É bom que estejam a trabalhar de todo. A Filosofia não emprega ninguém. Então, e o meu amigo já almoçou? Não se quer juntar a mim?
– Não posso professor, estou a trabalhar.
– A sua colega toma conta do recado, não? Hoje devem ter pouco movimento, com este temporal.
– Ela vai sair agora para as aulas.
– Ah. Bom, estarei por aqui um bocado. Se lhe parecer possível, sente-se um pouco daqui a nada. Metemos a conversa em dia.
Flamignon regressou ao interior do quiosque. A visão do professor incomodava-o: era como se tornasse evidente a possibilidade a que falhou. Olhava para Marta e pensava que daqui a uns anos seria ela a sentar-se na esplanada, a felicitar Flamignon por estar a trabalhar ali, a elogiar a sua resiliência, e ele respondendo, hesitando se a chama Marta ou Doutora.
– Bom, está na minha hora. Flamignon, vou andando, sim? Desculpa hoje estive pouco tempo. Compenso noutro dia.
Flamignon não prestou muita atenção, acenou com a cabeça e encolheu os ombros. Tentava estar mergulhado tanto quanto possível em tarefas que o disfarçassem: ler, limpar, reparar qualquer coisa. Marta é uma rapariga dedicada, doce por natureza. Já vai longe do quiosque quanto Flamignon se arrepende de não lhe ter dado o bilhete. Seja como for, pensa para si mesmo: há o Facebook. Com certeza não se desencontram. Iria pensar, ainda, se dizia algo por SMS ou não.
O dia começou a abrir, e a hora de almoço é sempre mais concorrida que as outras. Muitos cafés tira Flamignon. Mas num instante se acaba a corrida: os rigorosos horários de quem toma o café. Na calma do início de tarde, Flamignon regressa ao professor. Ainda lá está, sentado na mesma mesa, com o prato sujo vazio, o que resta das batatas fritas no cesto, o copo seco do que foi uma imperial. Não é agora que chega uma multidão, pensa Flamignon. E, se chegar, num instante me meto em posição de combate. Em jeito de preparação, levanta a mesa do professor. Trocam olhares cúmplices mas desinteressados, o professor está a ler. Flamignon toma a liberdade de encher dois copos com cerveja, aproxima-se.
– Agora que o sol brilha e não vem gente, posso oferecer-lhe uma cerveja e dois dedos de conversa?
– Finalmente se compõe o dia, Flamignon!
Na faculdade, o rapaz lembra-se bem, aquele era o professor preferido de todos: o que não preparava as aulas de forma arrumada. Aquelas horas eram como um devaneio digno de quem anda com tempo, sem destino aparente. É assim mesmo a filosofia, sempre curiosa, sempre mantendo num horizonte afastado o olhar.
– O que tem feito o meu amigo?
– O seu amigo não tem feito nada de especial. Trabalha aqui no quiosque e passeia um pouco.
– Diz que não faz nada, mas descreve uma vida atarefada: então não reconhece que muito se faz em tais circunstâncias? Olhe que passeando muito boa gente escreveu tratados.
– Bem sei, professor, mas não é o meu caso.
– Prometia tanto, Flamignon. Especialmente, prometia-se a si-mesmo. Em que tem pensado?
– Tenho pensado muito no meu pai. Morreu há dois anos.
– Meu amigo… Lamento muito. Pensará, por ventura, o que significa pensar no seu pai?
– Acho que tem que ver com uma espécie de desamparo, professor.
– Com certeza que tem. A ausência é coisa que nos tira a sola aos sapatos. Tudo dói! A memória é uma palmilha que vamos usando como remédio preventivo de problemas maiores.
– É certo, é certo.
– Lidar com isso é tarefa complicada. Não se sinta mal por aparentar que não produz alguma coisa. Sempre que perguntamos o que está alguém a fazer parece que accionamos o empreendedor em nós: a pergunta não tem que ver com produção, ou utilidade. É existencial. Pergunto-lhe o que faz e diz-me que faz pouco mas na verdade com muito anda a lidar o meu amigo Flamignon.
– Não consigo pôr nada em prática. Comecei uma experiência a que chamei A Força do Desábito, mas não sei se continuarei. A vida tem sido, apesar de lhe relatar estas aventuras, bastante monótona.
– Está desconsolado. É natural, nestas circunstâncias…
– Mas não tem que ver com meu pai, professor. A verdade é que tenho a impressão de que todas as minhas escolhas foram erradas. Decidi ceder ao impulso natural, mas o meu impulso natural não está de acordo com a realidade que vivemos. Sinto-me constantemente descontextualizado: o meu gosto pela Filosofia é antigo, não interessa ninguém; mesmo que escreva, ninguém vai querer ler, não se pratica isso; pensar, pelo mesmo caminho vai. Sou constantemente confrontado com a noção de que devia fazer qualquer coisa que me desse possibilidade de viver num sentido prático: penso muitas vezes que devia abrir um negócio: mas o quê? Uma editora, que é para o que me sinto competente? Que raio de negócio é este em que me meteria? Estava talhado para a ruína. Enfim, professor, arrependo-me muitas vezes de não ter cedido à pressão social: devia ter sido médico, ou advogado, ou jogador de futebol. Não devia ter estudado coisas tão exóticas para o momento presente. Que interessa ao mundo o que Bergman fez, ou o que Séneca escreveu? O mundo ignora que eles existiram: a vida continua.
– Esse não-sentido parece-me bastante para dar sentido à vida de um filósofo. O meu amigo propôs-se a pensar: e não é o que essa inquietação provoca?
– É, professor.
– Então de que se queixa?
– Da inquietação não posso viver. E, como junto a inquietação à vida quotidiana, acabo por saltar de estupidez em estupidez, ou de fantasia em fantasia. Ainda agora: aquela rapariga que aqui trabalha, há um rapaz que gosta dela, aparentemente. Ele esteve cá hoje de manhã, logo pela manhã. Pediu que lhe entregasse um bilhete a combinar encontro. Eu não o fiz. E não o fiz deliberadamente. Escolhi, com consciência. Percebe?
– O meu amigo quis arranjar mais um motivo de inquietação, e, consequentemente, de pensamento. Para que se propõe a essas coisas? Acha que tem pouca matéria para escrever, procura criar material para meter em palavras? Comprou um demónio: a culpa. Isso vai dar-lhe pano para mangas. Mas vai acabar poeta, não filósofo. É isso que quer?
– Neste momento, professor, eu queria ter aptidão para vender uma casa. Queria ser vendedor profissional. Queria ter talento para viver.
– Vá, vá. Estamos sempre a tempo de aprender. Não faça da vida uma desgraça. Acima de tudo, não perca a esperança. Se realmente quiser mudar o curso da sua vida, está sempre a tempo de o fazer.
Durante uns instantes calaram-se. Ouviam os pássaros, o movimento doce e preguiçoso das folhas, as crianças no parque infantil, os carros que passam. Uma cadeira arrasta-se atrás de Flamignon, numa outra mesa. Alguém chegou e acabou de se sentar. O professor seguiu a chegada desta pessoa com o olhar, sorriu e disse
– Flamignon, faça-me um favor. Vá àquela mesa e diga ao senhor que acabou de se sentar que quem paga a sua conta sou eu. Faz-me esse favor?
– Claro, professor.
Flamignon levantou-se, foi até à mesa. Não compreendia exactamente o que estava por trás desta oferta inesperada. Talvez o professor e esta pessoa fossem amigos, mas porque não fazem as coisas com mais normalidade? Era chamar pelo nome e convidar para sentar à mesa. Enfim, este grau de relação com os outros Flamignon ainda não tinha alcançado, mas reconhecia que faz parte deste género de gente: caladas, contidas, meditando sempre e reservando para os outros a possibilidade de solidão. É um homem velho que chega, traz um pólo azul de mangas compridas metido dentro das calças. Ao sentar-se, cruzou as pernas e os braços, imediatamente se meteu a pensar – se não pensava já antes de se sentar. Parecia procurar com o olhar qualquer coisa no tronco de uma árvore. O maxilar deslocado, constantemente mexendo, o queixo avançado – de tal maneira avançado que afectava a forma como dizia
– Boa tarde, meu jovem. Traga-me uma limonada.
Flamignon reconheceu a voz, a forma de falar, o perfil e a postura. Não tinha convivido nunca com este homem, senão pelas suas ideias. Achava impossível conviver com este homem algum dia, uma vez que, em princípio, Agostinho da Silva tinha morrido em 1994. No entanto, ele ali estava.
No céu, entre nuvens, uma clareira deixa que passe o sol. O jardim da Parada ilumina-se como num dia de verão.
Texto de Guilherme Gomes