Jeff Rosenstock: “A arte deve ser gratuita”
Todos os telejornais do dia seguinte falaram de Bono; nenhum de Jeff Rosenstock. É compreensível e justificável, comparando as quarenta mil pessoas que a MEO Arena reuniu em duas noites com as cem que marcaram presença no Sabotage. Mas assim como é importante que os meios de comunicação cubram fenómenos culturais de grande dimensão, não devemos cair no erro de ignorar as expressões mais divergentes e marginais. E o músico americano, como bandeira de um movimento DIY que continua a marcar a cultura alternativa desta década, é uma exemplar expressão dessa margem.
O calor no Sabotage não era medido apenas em graus centígrados. Era humano. O punk também ajudou, trazendo as emoções viscerais para a flor da pele e da boca para fora, sem papas na língua. Mas o punk de Rosenstock é sorridente, esperançoso, luminoso. Tivemos o privilégio de o conhecer e falar com ele algumas horas antes do concerto, e ficou-nos plasmada na memória a gratidão sincera com que reagia aos elogios que fazíamos à sua música. Dá gosto, sentirmos esta reciprocidade, entre artista e ouvinte – o meio, a música, a servir de pretexto para o convívio humano e para empatia.
O concerto de Rosenstock – que correu os seus vários álbuns, abriu ao som de “USA” do mais recente POST e terminou em êxtase com “We Begged 2 Explode”, com hinos pelo meio que deixaram mais de metade da plateia a saltar – foi uma explosão de alegria. Os cinco elementos da banda suavam em bica, Jeff cantou alguns trechos no meio da plateia, e saltou para cima de uma mesa para um solo de saxofone. Embora a entrada no clube tenha sido paga, o artista é conhecido por disponibilizar toda a sua obra gratuitamente na internet, para download; e já o fazia antes de terem nascido as mais conhecidas plataformas de streaming. Também falámos sobre isso. Às vezes fazem falta expressões radicais que defendam micro-utopias que inspirem o mundo a pensar diferente. E o punk – ou a power pop – de Jeff Rosenstock é isso: provocação. Uma provocação divertida e sorridente.
É a primeira vez que vêm a Portugal?
É a primeira vez que cá tocamos. Fomos à Alemanha no ano passado e voámos pela TAP, que teve um atraso de oito horas em Portugal. Pegámos em toda a nossa tralha, apanhámos um comboio – acho que viemos até perto daqui – e simplesmente demos uma volta ao pé do rio. Estávamos tão cansados, fiquei uma data de tempo deitado no chão, alguém tocava guitarra clássica; e nós só estávamos, tipo, “Isto é incrível, Portugal…”. E voltámos para o avião! [risos]
E hoje, tiveram oportunidade de ver alguma coisa?
Sim, chegámos hoje cedo, e vamos embora amanhã. Esta tour está mais focada numa série de concertos em Espanha, mas, felizmente, conseguimos um concerto em Portugal. O concerto na noite passada começou à uma e meia e foi até às duas e quarenta e cinco da manhã; foi muito, muito tarde, e a viagem foi desagradavelmente quente, portanto chegámos ao hostel e simplesmente deitámo-nos na cama. O Dan, o nosso teclista, disse “hey, vou dar um passeio”, e nós só lhe respondemos: “ah, deixa estar, nós vamos ao Starbucks arranjar um café grande, american-sized.”
Portanto, fomos parar ao El Corte Inglês – e foi como entrar num portal esquisito que infelizmente nos levou de volta à América, onde tudo é como num centro comercial. Quando saímos, estávamos de volta a Portugal. Voltámos à van e o Dan disse-nos: “sabem, fui dar uma volta pelo parque e vi um museu; o museu era de entrada livre e eu visitei-o, e lá dentro havia uma data de Monets!”, e eu pensei, “Bolas, devia ter ido dar esse passeio com o Dan”. Portanto, foi isso que eu vi hoje. Mas ainda vamos dar uma volta antes de tocar.
E chegaste agora aqui ao Sabotage. Este tipo de espaços: um clube pequeno, com grande proximidade ao público, entusiasmam-te? Preferes tocar em espaços maiores ou mais pequenos?
Gosto de tocar em todo o lado. É divertido. Tenho saudades de tocar concertos dentro de uma casa, numa sala de estar… é algo que acho que já não é possível para nós, fica demasiado cheio, não é agradável para ninguém. E agora temos tipo seis mil teclados nos nossos concertos, e não há espaço para pôr isso tudo!
Mas clubes pequenos ou festivais – divirto-me em todos, é mesmo bom tocar música. Nós os cinco somos bons amigos, gostamos mesmo de tocar juntos, seja onde for. No caso de festivais grandes… quando somos miúdos e vemos uma banda a tocar num palco grande dizemos “os Suicide Machines são incríveis” ou “os Fishbone são incríveis, vê só o que eles fazem”. E agora podemos experimentar a nossa própria versão disso. Eu costumava sentir-me desconfortável com a ideia, até ter pensado: “epá, vai, simplesmente! Tenta! Dá tudo para uma grande plateia!”. Se não correr bem, pelo menos foi fixe tentar tocar num festival. Temos de descobrir como tocar para grandes audiências e para clubes. Além disso, a minha banda é mesmo boa, tipo, eles são mesmo, mesmo, mesmo empenhados e fixes. São incríveis. Por isso, tenho a sorte de saber que, onde quer que toquemos, eles vão sempre cobrir os meus enganos. [risos]
Porque é que para ti é tão importante poderes partilhar gratuitamente os teus álbuns?
Faz-me sentido, simplesmente. Na minha primeira banda, The Arrogant Sons of Bitches, passámos muito, muito tempo na nossa última gravação. Não tínhamos um manager, não sabíamos fazer nada disso. E ninguém nos respondia. Foi um processo muito frustrante. Um dia tivemos uma discussão e eu disse: “eu não quero vender este álbum, eu quero disponibilizá-lo gratuitamente. Quero gravá-lo e disponibilizá-lo para as pessoas o ouvirem.” Então a nossa banda separou-se e eu voltei para casa… Nessa altura estava a aprender a gravar sozinho; e dar a música de graça a quem a quisesse ouvir simplesmente fazia-me sentido. A quantia de dinheiro que fazemos ao vender um CD não compensa o número de pessoas que poderiam ouvir a música se a puseres acessível gratuitamente. Acho que é algo que tenho vindo a perceber com o tempo; nessa altura, simplesmente decidi-o, meio impulsivamente. Pensei, e ainda penso, que a arte deve ser gratuita. Acho que pessoas que não têm dinheiro querem ouvir música e querem apreciar arte. A arte toca toda a gente. Pensei, qualquer pessoa que tivesse acesso a um computador poderia aceder à música; não interessa onde vives, não interessa quanto dinheiro tens. Nessa altura parecia algo estranho de se fazer. Mas agora toda a música é gratuita, por causa do Spotify, e os artistas nem sequer são pagos.
Que outras coisas não fazem sentido na indústria musical? O que é que te incomoda?
Eu tento não pensar muito nisso, tento que não me aborreça. Nós tivemos boas experiências a fazer as coisas à nossa maneira; mas, durante algum tempo, eu era agressivo para com pessoas que fizessem de maneira diferente. Eu sei que cada um está no seu próprio caminho.
Mas acho que, em muitos sítios, quando segues até ao topo da cadeia, o interesse deles é explorar o artista, o músico. Por exemplo, na América, começámos a tocar em espaços maiores – e agora esses espaços cobram-nos cerca de 10 ou 20% das vendas do nosso merchandising, por noite. Somos obrigados a subir os preços, e isso afecta as pessoas que querem ouvir a nossa música; e eu não quero fazê-lo. Portanto, torna-se algo bizarro. Às vezes parece que eles simplesmente procuram prejudicar os músicos. Não parece um sistema artist-friendly. E acho que já vimos como isso afecta a música numa larga escala. A comunidade DIY não aceita isso da mesma maneira – bandas de rock ‘n’ roll, bandas punk, muitas delas underground, mas não muitas que sejam grandes, porque eles lixam-te e tiram-te cada cêntimo que possam tirar… e, se não fores um milionário, como é que é suposto continuares?
E é aí que tu estás, na cena DIY? Como é que definirias o teu género musical? Algures numa fronteira entre o rock, o punk…?
Acho que somos uma banda punk, de coração. Escrevemos canções pop – eu gosto de músicas pop – mas tocamos com energia punk e nós só queremos, tipo… tocar a cena mais fixe. [risos]
Há quem vos etiquete como power pop…
Eu gosto de muitas bandas power pop. Sim, identifico-me com isso, claramente; mas acho que os puristas da power pop diriam que fazemos demasiado barulho e gritamos demasiado, e que temos demasiadas cenas a passar-se para fazer parte do género. Alguém me disse, ontem, que éramos uma banda prog punk – mas eu não sei; temos muitos teclados e eu componho músicas poppy… As músicas da Madonna que eu ouvia quando era miúdo estão no meu coração tanto como, sei lá, The Clash, Operation Ivy ou Minor Threat. Há muita boa música. Eu gosto da variedade. Acho que as pessoas, às vezes, têm medo de um espectro de gostos demasiado alargado… mas nós gostamos de tudo.
Como por exemplo…? O que tens andado a ouvir?
Posso partilhar aquilo que literalmente descobrimos hoje. Os nossos amigos da banda Saintseneca lançaram agora um álbum muito bom, chamado Pillar of Na. Ouvi-o hoje pela primeira vez, é mesmo bom. Também ouvi hoje, na van, uma banda espanhola chamada Wild Honey. Também são muito bons: música calma, de certo modo, mas também pop, com arranjos lush e coisas assim.
Estou a tentar lembrar-me de mais… esta não comecei a ouvir agora, mas chama-se Scared of Chaka; eles são, tipo, uma banda punk lo-fi super poppy e lançaram um álbum chamado Crossing With Switchblades, de que eu gostei mesmo a sério. Se estiveres à procura de uma banda punk esquisita, em que ficas a pensar “de onde é que isto veio?!” – não procures mais.
Também o novo álbum dos Hop Along; Laura Stevens, Stand Sidekicks, Katy Ellen. Tenho a sorte de gostar das bandas dos meus amigos; normalmente são o que eu ando a ouvir.
A mensagem do vosso último álbum: achas que é tão importante para o resto do mundo como para a América?
Espero que sim. Foram escritas com um sentido de grande urgência. Sete das nove músicas nesse álbum foram escritas em cerca de uma semana e meia. Fui para o meio das montanhas, em Nova Iorque… foi incrível! Foi a coisa mais sortuda que alguma vez fiz. Então, fui para as montanhas em Nova Iorque e veio uma tempestade de neve; eu ainda tinha o trabalho por acabar, mas já com demos gravados. Voltei para casa e acabei-as. Mas acho que… depois de trabalhar um pouco mais nele, sei que não queria mesmo fazer disto um álbum sobre o Trump, que é o que toda a gente me tem andando a perguntar. Porque não é, não é sobre isso. Em primeiro lugar, não quero sequer falar sobre ele. Ele adora que falem sobre ele e não quero dar-lhe essa satisfação.
Eu não falei no nome dele…
Obrigado! Não é como se ele fosse o Voldemort, ou isso, mas é um imbecil. Aquilo em que estava a tentar focar-me era noutras coisas. No sentimento de sofrer bullying: ser maltratado na escola secundária, ser maltratado quando estamos a crescer, o sentimento de ser maltratado por pessoas gananciosas com intenções capitalistas, e de ser maltratado pelo sistema onde nascemos; de nos sentirmos traídos pelas pessoas que não se juntam a nós a tentar mudar as coisas; pessoas que estão confortáveis e não querem mudar nada, que pensam que este tipo de merdas é aceitável. E não é.
Também queria captar o sentimento de podermos parar para dizer: ok, há tanta coisa louca a acontecer, tenho de absorver, pensar sobre isso e tentar perceber como posso reagir de alguma forma que não seja só ser agressivo no Twitter; ou que não seja só desligar-me emocionalmente. Por isso o álbum divide-se em duas secções, em que numa delas eu tento captar isso. Isto soa pretensioso, mas, enfim; não quero saber. Eu sabia que este álbum ia ser intenso, mas queria que alguns momentos permitissem respirar, que é algo que descobri com a música ambient, quando estivemos em tour pela Europa, mesmo antes de gravarmos o Worry. Esse género ajudava-me a processar os meus pensamentos, de certa forma, quando parecia que eles disparavam em todas as direcções.
Acho que este álbum é sobre estas três coisas. E são sentimentos universais: ser-se maltratado, não saber o que fazer em relação a isso, e desejar simplesmente parar e pensar como é que podemos lidar.