Beach House: um banho de texturas no Coliseu dos Recreios
Em contraluz vemos pouco. O que se interpõe entre nós e uma fonte luminosa fica escondido, oculto, misterioso. Feições e expressões, movimentos – a impressão que nos fica é apenas aquela que a silhueta nos permite reter. É claro que a música por si só não precisa de imagem – a maior parte das vezes até a dispensa por completo. Mas um concerto ao vivo resgata essa dimensão visual, relaciona-a com o som. No caso de um espectáculo dos Beach House, o foco não está tanto nos movimentos corporais dos artistas, ou naquilo que eventualmente expressem na escuridão que os cabelos também ajudam a resguardar (isto pese embora Victoria Legrand se dobre com entrega nos momentos de maior catarse). A banda cultiva um ambiente sereno, bordado a alguns apontamentos coloridos dos projectores, ou a telas que projectam uma cor única, serena e escurecida. Uma análise do que conseguimos ver poderia resultar numa conclusão precipitada: passa-se muito pouco em cima do palco. Mas seria injusto dizê-lo, porque é esse ambiente minimalista que potencia o carácter íntimo dos concertos da banda de Baltimore, que ontem inaugurou a sua digressão europeia de 7, no Coliseu dos Recreios em Lisboa.
Até porque, em termos sónicos, nada nos falta. O equilíbrio de som, nas suas dinâmicas de canção para canção (e mesmo na evolução da estrutura interna de cada uma), é inspirador. Principalmente nas faixas em que o baterista entra, marcando um andamento com pancadas graves vibrantes por cima da natureza etérea das composições dos Beach House – “Dive”, o tema que encerrou o concerto, é uma prova disso mesmo, com o crescendo tremendo da bateria ao longo da segunda metade da canção, que resultou ainda mais grandioso do que na versão de estúdio. Mas não foi o único. Também em “PPP”, e em “Sparks” – de Depression Cherry, álbum que também teve um lugar de destaque no alinhamento de Lisboa – os minutos finais são de catarse, com a bateria a propor muitas ideias e a injectar força.
É claro que a guitarra de Alex Scally não é alheia a este processo. É, talvez, o instrumento mais sensível dos três presentes em palco. Destaque para o seu papel em “Beyond Love”, onde parece sangrar naquele primeiro minuto. Mas também em muitas outras: naquelas em que assume uma repetição, por vezes reminiscentes dos The xx; e também nas outras, em que se passeia, por vezes com recurso à técnica de slide guitar, em glissandos discretos que recheiam o ambiente. Alex é ainda responsável pelas vozes secundárias, com um timbre que passa despercebido em muitos momentos, mas que constitui frequentemente uma base por cima da qual Victoria constrói.
E constrói tão bem. Victoria Legrande é uma vocalista impressionante. Com um timbre característico e meio tímido, que nos concertos parece abrir-se e expandir-se até ao limite do que achávamos possível. As notas difíceis sustentadas, com intensidade, numa gestão de fôlego por vezes surpreendente – os instantes mais rasgados, pontuais, que rompem. Mas também nas passagens mais frágeis, como o início de “L’Inconnue”, em harmonias delicadas a montarem uma teia etérea.
Em Lisboa, foi particularmente gratificante podermos viver as músicas em que o volume subia, os sons se misturavam, numa reverberação áspera, e se propunham como parede ao nosso encontro. É o lado mais shoegaze do duo americano, que esporadicamente vem à tona em estúdio, mas que se expressa de maneira incontornável nos concertos. O público acolhe com entusiasmo todas essas ideias coloridas, rasgos de força que a música consegue invocar – no Coliseu dos Recreios, bem composto, sentia-se acima de tudo a atenção e a devoção de um público que sabe que pode contar com os Beach House para encontrar um lugar de conforto pela noite fora, em casa, na rua, em qualquer lugar. E que vai ali em atitude de gratidão. Victoria também retribui o agradecimento, de coração, numa declaração sentida à cidade de Lisboa, onde tem memórias do seu primeiro concerto, um dos primeiros da Europa em que a banda se sentiu particularmente amada – e a voz treme-lhe, nesse instante. De Alex só ouvimos “obrigado”, repetido várias vezes. É quanto basta.
Embora o concerto se tenha focado principalmente no mais recente disco 7 – que acolheu nesta primavera o carinho da crítica e do público, e que se manifestou com grandiosidade nas versões que apresentou ao vivo – e em Depression Cherry, do qual ouvimos cinco temas, houve ainda tempo para três de Bloom e dois de Teen Dream, álbuns de sonoridade mais cheia e propositiva. Mas os aplausos do público eram indiferenciados, e sempre entusiasmados – estava-se bem ali, apesar do calor na sala. Embora no meio de uma plateia algo estática, o que também se justifica pelo carácter de introspecção inerente à maioria dos temas, nadávamos na música dos Beach House – a banda que se contém no número de truques e se foca nas melodias, e principalmente nas texturas, para apresentar o que de melhor tem para dar.