A transparência da nossa consciência – um “ídolo do teatro”?
Neste retorno à normalidade após o verão, venho colar no meu ecrã um post-it com a inscrição “Navegar entre os aforismos de Francis Bacon!”. E, embora já tenha entrado na idade em que dificilmente terei algo parecido com um conselho a dar a alguém, atrever-me-ei a sugerir que especialmente os estudantes de Pensamento Contemporâneo, e cadeiras afins, nas licenciaturas ou mestrados de engenharias e demais técnicas, ponderem algo equivalente àquele post-it.
Erasmo, Descartes, Galileu…
Com Erasmo de Roterdão (1469-1536) e os seus pares, depois da terrível Peste Negra do séc. XIV, e da conceção medieval do ser humano no seio de um universo centrado num Criador transcendente, foi reabilitada uma dignidade propriamente humana. Não necessariamente substitutiva da dignidade divina, mas valorizadora da liberdade, da ação, e da vida humana. Gerando-se assim um otimismo em relação à história que as sucessivas gerações de mulheres e homens podem construir.
Assim se plantou o tronco Moderno.
Que estamos habituados a seguir eminentemente num ramo: aquele que desenvolve a consciência onde o homem se reconhece. E em cuja clareza se descobrem os axiomas matemáticos, e se desenvolvem as regras de inferência lógica, que facultarão a prova dos teoremas usados pelas ciências Modernas. A história é conhecida:
Já no séc. XVII, René Descartes julgou que podemos duvidar de tudo, menos de que haverá nesse ato alguém que assim estará a duvidar, ou pensar. A certeza na existência desse sujeito de pensamento seria pois uma pedra sobre a qual se poderia construir todo o edifício do conhecimento. Desde as propriedades do ser humano que implementa essa subjetividade, que haveriam de ser consagradas nos consequentes Direitos Humanos… até à linguagem matemática, em que Galileu disse estar escrito o livro do universo. Designadamente, uma órbita da Terra – planeta que não seria o centro desse universo.
Esta última ideia não era nova. Mas as observações realizadas pelo físico italiano, mediante um primeiro pequeno telescópio, foram decisivas para a sua sustentação em detrimento do geocentrismo.
Ou seja, para o reconhecimento da verdade de uma hipótese científica, formulada especulativamente, foi afinal decisivo um instrumento técnico.
Os quais, entretanto, têm sido igualmente decisivos para a criação de condições de vida que cumpram a celebrada dignidade humana.
…E o ramo do visconde de St. Alban
Precisamente como Francis Bacon avançara no Livro I de Novum Organum (Novo Método), em 1620.
A tecnologia, porém, não se constituiria apenas como alavanca do progresso socioeconómico, nem como ferramenta de descobertas científicas. Muito mais radicalmente, este autor inglês escreveu no aforismo 124 desse Livro:
“Truth and usefulness are the very same thing; and practical applications [of scientific results] are of greater value as pledges of truth than as contributing to the comforts of life.”
Ou seja, não encontraremos os princípios cognitivos por introspeção na consciência, para em seguida aplicarmos as verdades científicas nas diversas tecnologias. Antes, é o correto funcionamento destas últimas que garante, retrospetivamente, a verdade possível às teorias implicadas por essas tecnologias. E esta garantia retrospetiva, segundo o ex-chanceler inglês, será um seu contributo ainda mais valioso do que aquele que elas trazem às nossas condições de vida.
Esse triplo valor da tecnologia – como instrumento para a investigação teórica, como critério da verdade dessa última, e como aplicação prática no progresso das condições de vida – me parece familiar a uma civilização que mais depressa será o resultado da assunção coletiva da utopia da Nova Atlântida (1627) – em que Bacon sugeriu literariamente o progresso baseado na técnica – do que de grandes planos Iluministas, como o de uma sociedade que enfim deixaria florescer o bom selvagem que, supostamente, todos traremos em nós.
Mas, se tem sido a versão realista e possível da Nova Atlântida que mais temos vindo a desenvolver, por que razão tantas teses (suponho que) se continuam a fazer sobre Descartes, Rousseau, o idealismo alemão…? Por que razão se enchem artigos na comunicação social com loas à pretensa evidência de um Homem e dos seus Direitos, enquanto (acredito que) a maior parte das pessoas associará o nome “bacon” àquilo que se come com ovos mexidos? Tenho a ideia de que os pragmatistas norte-americanos dos séc. XIX e XX (que diria poderem ser filiados neste outro ramo Moderno) não fazem parte do programa de estudos secundários – se é assim, porquê, enquanto se enchem esses programas de referências àqueles pensadores anteriores?
Talvez porque todas essas pessoas simplesmente não concordam com a acima sugerida filiação cultural dos nossos tempos.
Ou talvez, como poderemos explicar com base ainda no Novo Método, porque a cultura Moderna se disfarçou para mais eficientemente se realizar. O que implica que, nesta cultura, nenhum valor se sobreporá ao da eficiência técnica, se é que algum outro valor sequer se lhe equipara. Concretamente, teremos disfarçado este valor sob a crença numa autotransparência da consciência humana, com a qual validaríamos, num artifício de indubitabilidade, objetivos apenas propostos na base de ganhos de eficiência. Aquela autotransparência constituirá assim o que Francis Bacon chamou um “ídolo do teatro” – uma miragem com que o pensamento se ilude a si próprio.
Para uma nova Nova Atlântida
Enfrentando, hoje, novas tecnologias que tememos poderem substituir o Homo sapiens, enquanto a Terra aquece parece que pelo uso intensivo que temos vindo a fazer das últimas tecnologias… estaremos condenados a prosseguir um tal pensamento mecanicista, operando sob o valor apenas da eficiência?
Esse será o postulado que encontramos logo no Prefácio do Novo Método. Todavia, já no Livro II (início do aforismo 20), o autor reconhece afinal “permissão ao intelecto” para ir experimentando outras pistas além daquela que o método prescreva, em cada passo de cada processo. Nessa obra encontramos pois uma baliza, depois uma sua contrária, e pelo meio o espaço aberto – não qualquer estrutura sistemática, como nos racionalistas modernos e seus descendentes – cabendo ao intelecto traçar a rota entre umas e outras.
Aqui fica a sugestão de navegações por entre esses aforismos. Num regresso ao tronco plantado por Erasmo – diria que particularmente sugestivo aos estudantes que hoje, num programa com esse nome, atravessam as terras onde se gerou a Modernidade.