Apontamentos sobre filmes e o público de “Terra Franca” no 24.º Festival Caminhos

por Diogo Lucena e Vale,    19 Dezembro, 2018
Apontamentos sobre filmes e o público de “Terra Franca” no 24.º Festival Caminhos
“Terra Franca” (2018), de Leonor Teles

Terminou no passado dia 1 mais uma edição do Festival Caminhos do Cinema Português, depois de uma intensa semana de viagens cinematográficas. O Caminhos difere de outros festivais ao sacrificar, em parte, uma visão curatorial em prol de uma missão de exibição das “principais obras produzidas em contexto nacional”, ao que se somam ainda algumas obras internacionais. Naturalmente, isto acontece em qualquer festival, mas aqui, cada espetador é convidado a construir a sua própria experiência – veja-se como não constam da programação quaisquer ciclos temáticos, por exemplo. Abaixo deixo, não críticas sobre aqueles que me pareceram os melhores filmes exibidos – aí teria de incluir também A Árvore (2018) -, mas pequenas reflexões sobre alguns olhares que, por entre a multidão, o meu prenderam.

Russa (2018), de João Salaviza e Ricardo Alves Jr.

Na sua mais recente curta-metragem, João Salaviza, em parceria com o brasileiro Ricardo Alves Jr., acompanha uma habitante do bairro do Aleixo que estava na prisão aquando da demolição das torres em 2011 e 2013. Ao retornar a casa, ela choca com todas as pequenas e não tão pequenas mudanças acumuladas ao longo do tempo em que esteve ausente. O bairro não é o mesmo.

O truque é simples, mas eficaz: ao espetador é dado o ponto de vista de alguém para quem estas mudanças ocorreram abruptamente, sendo, deste modo, a sua perceção dos mesmos eventos igualmente aumentada. Neste caso, a estratégia é empregada para nos fazer compreender, tão-somente, a destruição de uma comunidade.

Yover (2018), de Edison Sánchez

O texto após as imagens informa de o que não seria possível adivinhar de outra forma: o rapazinho cujo percurso estivéramos a seguir pertence às mais recentes gerações nascidas em Bojaya, a vila colombiana que em 2002 viu mais de uma centena dos seus habitantes perder a vida como resultado de confrontos entre guerrilhas e forças paramilitares. Antes disso, vemos o seu dia-a-dia a transportar mercadorias, exposto em composições verticais de cores vibrantes. Destaca-se o espírito trabalhador e o esforço do jovem, mas sem ponta de condescendência. Nesse sentido, a queda da roda da bicicleta que durante todo o percurso ameaça soltar-se, como resultado de uma partida de um outro rapaz, efetivada apenas ao final de um dia de trabalho, enquanto ele saboreia um sumo, parece incisiva: uma perentória recusa do miserabilismo à moda de Iñárritu.

https://vimeo.com/252651856

Tempo Comum (2018), de Susana Nobre e Terra Franca (2018), de Leonor Teles

A comparação entre os filmes de Susana Nobre e Leonor Teles não é tão relevante por aquilo que os aproxima (poucas e vagas coisas), como que por aquilo em que diferem.

Ambos constituem observações da vida quotidiana portuguesa. Ambos são filmes que lidam com o real de forma muito direta – vulgo documentário. Se quisermos atentar esses detalhes, ambos são assinados por mulheres – algo a ser celebrado, ainda que pouco relevante. Eis as semelhanças.

A ação de Terra Franca desenrola-se em torno de um pescador e sua família, observando as conversas e os silêncios entre eles, sendo as trocas de palavras com pessoas não incluídas no núcleo familiar escassas. A figura de Albertino, o pai, é sem dúvida central, e é segundo o impacto que nele têm que nos apossamos do sentido dos eventos. Contudo, estes mesmos eventos são, de um modo geral, banais, não sendo informativos para lá daquilo que concerne esta família em particular. Cada pessoa é única e insubstituível, todavia, do ponto de vista do filme, poucas seriam as diferenças caso Teles, ao invés de seguir Albertino, tivesse feito do seu vizinho do lado o protagonista. A dada altura, surge um sinal de um possível conflito: a revogação da licença de pesca, que, a confirmar-se, lançaria a família em dificuldades económicas. Salvo uma ou outra menção em conversa, este problema fica virginalmente inexplorado, num filme marcadamente pautado pela estase. Restam, neste deserto ideológico, enquanto pilares de suporte da obra, o olhar de Teles, atento de igual forma à beleza do espaço e às pessoas que os habitam, a quem dá amplo espaço, filmando-os sem pretensões, e as personalidades dos integrantes da família, capazes de inspirar empatia em qualquer espetador. Talvez este fosse precisamente este o objetivo: valorizar acima de tudo o quotidiano, apelar à humanidade ao invés de abordar problemas concretos. Se o gesto em si poderia ser louvável, os seus efeitos práticos são iguais ao não fazer nada, levando o espetador de volta à mera observação da vida pessoal de outrem. Por isso, apesar de tudo, é pena ver uma voz outrora tão irreverente como a de Leonor Teles, responsável por Rhoma Acans (2014) e Balada de um Batráquio (2016), diluir-se num filme tão trivial.

Por outro lado, Tempo Comum tenta, sem sacrificar a componente mais intimista que também carateriza Terra Franca, ter um olhar de maior âmbito. No centro do filme está um casal que acaba de ter uma filha – Marta, Pedro e a sua Clara. A propósito do nascimento, esta família partirá numa peregrinação de conversas com família e amigos próximos, espalhados entre a capital portuguesa e uma pequena aldeia. O território social coberto é tão disperso quanto o geográfico, desde a avó atriz ao pastor da aldeia, contudo, todos, para lá da sua idade, classe social ou educação têm algo a dizer, um conselho para dar ou receber, uma história para contar, sobre aspetos transversais da experiência humana moderna: a vida conjugal, gestão do trabalho e família, a educação de um filho. Nestas trocas abertas e sinceras, vemos as vidas dos intervenientes confundirem-se. Nobre consegue, assim, ir além dos indivíduos que filma, para se aproximar de uma visão transcendente, universalista.

Regressando a Terra Franca, o olhar inegavelmente respeitoso que muito tem vindo a ser elogiado a Leonor Teles afigura-se parca justificação para a receção excecionalmente entusiástica que o filme teve diante de algum público e crítica. Este olhar, no máximo, constitui salvaguarda para que não se o julgue de imediato desprezível. A falta desse respeito é anormal, não o contrário. Admitindo, desde já, a relativa heterogeneidade destas audiências, parece-me que melhor relação causa-efeito poderá ser encontrada tomando em consideração alguns traços comuns que as caraterizam. Escreve Sontag que “Fotografias não conseguem criar uma posição moral, mas conseguem reforçar uma”. Assim, dado o caráter citadino, culto e maioritariamente de classe média a alta do público – como evidenciado neste estudo publicado pela Obercom -, poderemos perguntar-nos se o que é visto no filme não é, na verdade, o reflexo do seu próprio paternalismo perante o estilo de vida humilde do pescador. Este fenómeno não é inteiramente novo: o cinema africano com mais projeção na Europa é aquele que retrata a pobreza e a miséria, confirmando a imagem mental que se tem destas regiões, ao invés daquele que retrata a vida cosmopolita nestas regiões, ou simplesmente cujo foco não é as débeis condições de vida de alguns dos seus habitantes, evidenciando a preferência do público por obras que confirmam, ao invés de desafiarem, o seu conhecimento prévio. Novamente Sontag:

Gostaríamos de imaginar que o público americano não teria sido tão unânime na sua aquiescência da Guerra da Coreia se tivesse sido confrontado com provas fotográficas da devastação da Coreia (…). Mas a suposição é trivial. O público não viu tais fotografias, porque, ideologicamente, não havia espaço para elas. (…) Os americanos tiveram acesso a fotografias do sofrimento dos vietnamitas (muitas das quais de origem militar e tiradas com um uso bastante diferente em mente), porque os jornalistas sentiam-se apoiados nos seus esforços (…). A Guerra da Coreia era entendida de maneira diferente – como parte da luta justa do Mundo Livre contra a União Soviética e a China – e, dada esta caraterização, fotografias da crueldade do armamento americano teriam sido irrelevantes.

Esta ideia de classe está igualmente presente em Tempo Comum, como em qualquer filme, pois é algo que permeia toda a nossa sociedade, sendo inescapável, mesmo num contexto artístico. A própria noção de que o filme pretende explorar ideias para lá de grupos sociais a que me referia parte precisamente da identificação dos sujeitos representados enquanto pertencentes a diferentes classes. A principal diferença entre os dois filmes é que enquanto Nobre sugere que olhemos para lá do classismo, Teles cria – ainda que inadvertidamente, não duvido – um recreio voyeurista. Isto é, o filme não encoraja essa atitude, simplesmente deixa espaço para ela – tal como a beleza, o paternalismo está no olhar de quem vê.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados